São Paulo, sábado, 05 de maio de 2007

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Crítica/coletânea

Clarice "repórter" inibe entrevistados

Coletânea "Clarice Lispector: Entrevistas" mostra autora fazendo perguntas de adolescente e recebendo declarações de amor

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Entrevistar escritores retraídos (como Rubem Braga), terrivelmente lacônicos (como Pablo Neruda) ou terrivelmente prolixos (como Nélida Piñon) não devia ser fácil. Mas a situação desses três autores (e de outras dezenas de personalidades dos anos 60 e 70, de Jorge Amado a Zagallo) era ainda mais difícil. A entrevistadora, famosa pelo ensimesmamento de seus contos e romances, chamava-se Clarice Lispector.
Trabalhando como repórter para o "Jornal do Brasil" e para as revistas "Fatos e Fotos" e "Manchete", a autora de "Perto do Coração Selvagem" era capaz de perguntas de adolescente, que costumava repetir a cada entrevistado: "o que é o amor?" ou "qual a coisa mais importante do mundo?"
Poucos autores conseguem ser originais diante de indagações desse tipo. "Amor é dádiva, renúncia de si mesmo na aceitação do outro", responde Fernando Sabino. Sem muita paciência, Neruda responde que "o amor é o amor". Chico Buarque sai pela tangente: "não sei definir, e você?" Ao que Clarice Lispector responde: "nem eu". Zagallo, depois de pensar um tempo, dá sua versão: "é um sentimento recíproco". "É bom estar apaixonada?",
pergunta Clarice, banalmente, a Elis Regina. Banalmente, a cantora responde: "Bem melhor do que não sentir nada!"
Não por acaso, Clarice pede a Pablo Neruda que diga alguma coisa surpreendente. O poeta chileno responde: "748". Surpresas mais autênticas, felizmente, acontecem de quando em quando.
Perguntando a Alceu de Amoroso Lima (1893-1983) o que ele sentiu diante das viagens à Lua, Clarice Lispector ouve o seguinte: "Não mais do que adolescente, em 1909, estando em Berlim, ao ler nos jornais que Blériot atravessara o Canal da Mancha de avião!"

Declarações de amor
A maior frustração de Fernando Sabino é a de não ter sido um santo. Millôr considera-se, no fundo, "um atleta frustrado". Jorge Amado joga pôquer e confessa já ter escrito poesia, "da pior espécie possível". A entrevistadora recebe também algumas discretas declarações de amor. Tom Jobim escreve um poema sobre seus olhos verdes. Hélio Pellegrino, numa das melhores entrevistas do livro, diz que se lhe fossem dadas outras vidas para viver, numa delas seria marido de Clarice Lispector, "a quem me dedicaria com veludosa e insone dedicação". Referindo-se ao acidente que Clarice sofreu em 1967, Vinicius de Moraes murmura: "tenho tanta ternura pela sua mão queimada..."
Esta edição das entrevistas de Clarice Lispector, organizada por Claire Williams, difere em boa medida de uma coletânea anterior, feita pela própria autora. São agora 42 entrevistas, das quais apenas 23 já haviam sido publicadas em "De Corpo Inteiro". Da nova edição, não constam nomes como Clóvis Bornay, Benedito Nunes, Mário Schemberg e João Paulo dos Reis Velloso. Entram Paulo Autran, João Saldanha, Lygia Fagundes Telles e Ferreira Gullar, entre outros.
O mais desbocado e extremo de todos eles é sem dúvida o cronista José Carlos de Oliveira, que, a bordo de muitos uísques, termina quase brigado com a entrevistadora, de quem se queixa: "Clarice Lispector, em vez de comer e beber comigo, tem que pensar em entrevistas para poder sobreviver". Com certa amargura, resumiu o espírito de todo o livro.


CLARICE LISPECTOR: ENTREVISTAS
Autora:
Clarice Lispector
Editora: Rocco
Quanto: Preço a definir (232 págs.)
Avaliação: regular


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