São Paulo, terça-feira, 05 de julho de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

BERNARDO CARVALHO

The World é uma prisão

"The World", do chinês Jia Zhang-ke, é um filme da globalização. E, no entanto, só fala da imobilidade, da escravização, da impossibilidade e da inutilidade do movimento, enquanto o discurso oficial de banqueiros, investidores e tecnocratas hoje insiste em exaltar a velocidade (café da manhã em Londres, almoço de negócios em Nova York, jantar com empresários em Tóquio) e em tentar nos convencer das vantagens dos fluxos (sobretudo de capital, e numa certa direção) globais. Em "The World", o único movimento que resta de fato é o comércio, no pior sentido da palavra.
Exibido na seleção oficial do Festival de Veneza do ano passado, o filme estreou em Paris há um mês, em perfeita sincronia com as revelações divulgadas pela imprensa sobre a onda recente de imigração chinesa na França. Uma situação que as autoridades teriam preferido continuar ignorando, pois envolvem casos constrangedores de escravização de imigrantes em pleno território francês (no coração da nova Europa tecnocrática e não em algum país periférico da África, da Ásia ou da América Latina) por seus compatriotas.
Não é mero acaso que o marido de uma das personagens do filme, todo rodado num parque temático na periferia de Pequim, tenha pago os olhos da cara para comprar um visto francês e desaparecer, não sem antes mandar para a mulher um retrato tirado na saída da estação de metrô do bairro parisiense de Belleville. Num mundo reduzido ao comércio, a mobilidade custa caro.
Belleville é o subtítulo de um dos capítulos ou das partes em que se divide o filme de Zhang-ke. Assim como "Noite de Ulaanbaatar", entre outros, são subtítulos que se referem ao que dizem, pensam ou sentem os personagens, mas nunca ao local onde de fato estão. Todos querem ir para outro lugar, mas permanecem para sempre nesse limbo que é a estranha periferia de Pequim retratada pelo filme.
"The World" é um filme alegórico. O título se refere a um parque temático que reproduz os principais monumentos da humanidade (a torre Eiffel, o Arco do Triunfo, as pirâmides do Egito, a Acrópole de Atenas, o skyline de Nova York, a Torre de Pisa etc.) numa escala dois terços menor, nos arredores da capital chinesa. O slogan sobre o qual se sustenta o empreendimento, descontando a perversidade do subtexto, visa produzir uma sensação de alívio e atrair a população de um país onde nem todos podem obter um passaporte: "Dê a volta ao mundo sem sair de Pequim"; "Você me dá um dia, eu te dou o mundo". The World é um museu de fantasia a céu aberto, onde se conserva, como paródia involuntária, uma idéia de mundo que já não pode existir, o mundo como um parque de diversões, como um álbum de figurinhas.
São os personagens do filme de Zhang-ke que dão o contraponto do real. São empregados do parque, em geral gente que veio das Províncias, do interior, o lúmpen da globalização, para trabalhar como seguranças ou dançarinas e figurantes a caráter (egípcias, japonesas, africanas etc.). Gente condenada à imobilidade de uma farsa, sonhando com um passaporte, enquanto dança fantasiada de estrangeira em shows à moda da Broadway e caminha todos os dias entre a réplica do Big Ben e a do Taj Mahal, entre uma miragem do Japão e outra dos Estados Unidos.
""The World" mostra que já não há dia nem noite, nem interior nem exterior -tudo foi reduzido a uma unidade. (...) Em "The World", o que me interessava era fazer sentir o confinamento do lugar, o aprisionamento", disse o diretor em entrevista à revista "Cahiers du Cinéma".
É o mundo da globalização, onde, sob a ilusão da mobilidade absoluta, é preciso comprar o seu passe e a sua alforria para conseguir chegar a qualquer lugar. O movimento só é possível pelo comércio: pelo dinheiro, pela prostituição e pelo tráfico. Quando um grupo de russas que não fala uma palavra de chinês chega para trabalhar no parque, o homem que as contratou imediatamente recolhe seus passaportes, por "medida de segurança", "para que não corram o risco de perdê-los". Uma das russas dá a entender que prefere guardar o passaporte consigo e em poucos segundos se dá conta da sua ingenuidade. O mundo é uma armadilha. Trabalhar é escravizar-se. The World é uma prisão em que o movimento é sempre uma simulação inútil e patética.
Os indícios dessa imobilidade são inúmeros. Um homem manda um recado no celular para a mulher que o deixou: "Vamos ver até onde você vai". Quando vêem passar um avião, um personagem pergunta a outro: "Quem serão as pessoas dentro daquele avião?". E o outro responde: "Não sei. Não conheço ninguém que tenha pegado um avião".
No parque, há uma sucata de avião, um simulador para os que não podem voar. Para guardar em casa uma lembrança da viagem, os visitantes deixam-se registrar em vídeo, sentados num "tapete voador" diante de um fundo azul onde depois se inserem as imagens em movimento da sua volta ao mundo.
Já que não podem sair dali, os empregados se servem de binóculos para observar de longe as miniaturas dos falsos monumentos. A distância lhes dá pelo menos a ilusão de uma perspectiva mais real, mais humana e menos claustrofóbica. Só a distância lhes permite respirar nesse mundo que, de tão pequeno, já não permite nenhum movimento. A não ser o de se vender e de se hipotecar.


Texto Anterior: Cinema: Barreto revela "Dona Flor" e seus dois motivos
Próximo Texto: Literatura: "Folhas de Relva" chega aos 150 anos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.