São Paulo, quinta-feira, 05 de agosto de 2004

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TEATRO

"Mandrágora" do grupo Tapa celebra o sarcasmo maquiavélico

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Quinze anos depois, o Grupo Tapa retorna a "Mandrágora". Se, na premiada montagem, de 1988, a ênfase era dada ao aspecto realista da obra -e realmente é espantoso como um texto de 1503 expõe com tanta desenvoltura a vida cotidiana, sem se importar com o proselitismo religioso obrigatório da época-, agora o espetáculo incorpora em suas marcas a sem-cerimônia com a unidade de lugar e a intensa sexualidade que o texto emana.
Ninguém melhor que o Tapa sabe que o realismo não é uma solução de facilidade, de adesão a um ilusionismo vazio, mas uma técnica que depende de uma aprendizagem paciente. E é justamente por contar com um elenco que há 25 anos vem se aprimorando nesta linguagem é que se pode permitir de quando em quando uma ruptura total com o verossímil.
Para contar a história da virtuosa Lucrécia, que é corrompida pelos próprios representantes do sistema -sua mãe e seu padre confessor- para ceder às artimanhas do jovem apaixonado Calímaco, com a benevolência do velho marido iludido, a montagem adota não o racionalismo calculista a que se costuma associar o autor, mas um sarcasmo desbragado, que se apóia em convenções do teatro dos colégios medievais.
Assim, desde o início, todos os personagens estão presentes, com uma caracterização clara como uma alegoria, cada um em sua "mansão", cenários mínimos simultâneos. Durante o longo diálogo inicial entre Calímico e seu criado, que pode facilmente cair no tedioso por excesso de informação, os personagens ilustram o relato com ações pontuais e reveladoras. O efeito lembra os relógios medievais de figuras animadas, que saem de seus nichos com precisão mecânica, mas sem abandonar o "gestus" brechtiano, que caracteriza socialmente cada indivíduo.
Graças ao cuidado técnico que caracteriza o grupo, uma mesa tombada vira a carruagem que translada a ação de uma casa a outra; um manto sobre as costas e o criado de Calímaco, o impagável Igor Zuvela, vira uma senhora cúmplice das perversões do Padre, que Paulo Marcos faz com grande inteligência.
Guilherme Santanna merece grande destaque pelo modo como faz o difícil papel do velho e ridículo marido sem perder a dignidade, como se fosse um personagem de Molière. Sérgio Mastropasqua, seu criado, combina agressividade e subserviência, um retrato perturbadoramente reconhecível do pequeno funcionário corrupto, que presta contas a quem pagar melhor.
A anarquia sexual da peça, que contradiz a frieza que se costuma atribuir ao maquiavelismo, é garantida pela sempre apaixonante Maria Alice Vergueiro, que mantém um olhar generoso e ávido em seus companheiros de cena, no papel da libertina mãe de Lucrécia -sem perder a delicadeza quando, em um breve e emocionante dueto, endossa a reviravolta de sua filha, a sensualmente elegante Samantha Caracante.
De um modo geral, o que encanta nessa Mandrágora é a mistura de irreverência e apuro técnico, de grotesco e sutileza. Mostra que em 15 anos muito se conquistou no Tapa, no sentido do despojamento e da fé no taco.


A Mandrágora
Texto: Nicolau Maquiavel
Direção: Eduardo Tolentino
Com: grupo Tapa
Onde: Teatro Ruth Escobar - sala Dina Sfat (r. dos Ingleses, 209, tel. 2890-2358)
Quando: sex. e sáb., às 21h; dom, às 20h; até 5/9
Quanto: R$ 20 a R$ 30



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