São Paulo, sábado, 05 de agosto de 2006

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Crítica/romance

Obra essencial de polonês faz sátira sobre a imaturidade

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quase 70 anos após sua publicação, o fundamental "Ferdydurke" aporta entre nós. Um dos mais celebrados romances de idéias do século 20, é um livro para poucos, o que só valoriza sua publicação -antes tardia do que nunca- em português.
O polonês Witold Gombrowicz pertence àquele gênero de escritores cujas lendas superam a popularidade de suas obras. Tal desconhecimento é compreensível, dada a superficialidade do leitor contemporâneo, confortavelmente refestelado em suas certezas, porém não é perdoável em absoluto.
Derruir verdades estabelecidas é apenas uma das idéias contrabandeadas por "Ferdydurke". Nativo de uma cultura limítrofe como a polaca, perdida entre o Oriente e o Ocidente, Gombrowicz tratou de expressar seu sentimento antinacionalista, ou melhor, seus sentimentos egoístas em relação ao compromisso com sua cultura.
"É compreensível que um francês sinta adoração pela França e um inglês pela Inglaterra, já que lhe proporcionam vantagens valiosas", afirmou em depoimento a Dominique de Roux, em 1968, um ano antes de morrer. "Mas aos homens situados em países inferiores e mais débeis, como Polônia, Argentina e Bulgária, presos sentimentalmente a eles, subjugado por eles, o rompimento é um assunto de vida ou morte."
Seu pensamento provocativo sobre pertencer a culturas secundárias e escrever em línguas marginais não serve apenas ao leitor brasileiro, mas a quase todo o mundo atual. Na sátira grotesca e pulsante em desejo sexual de "Ferdydurke", Gombrowicz forjou o conceito de imaturidade presente em toda a sua obra. No livro, o protagonista, prestes a fazer 30 anos, é seqüestrado por um professor que o devolve à adolescência e à escola.
Calcada no embate entre ideais "elevados" pertencentes à idade madura, tais como a beleza e a verdade, e a imperfeição característica da juventude e de sua alijada Polônia, a idéia de imaturidade gombrowicziana se reflete na forma direta da narrativa, plena de arestas e interjeições. O caos presente em "Ferdydurke" antecipou já em 1937 os dilemas da literatura pós-moderna.
É importante também celebrar a opção editorial por traduzir o livro do polonês, prática recente entre nós quando se trata de línguas incomuns. No entanto alguns reparos ao tradutor Tomasz Barcinski devem ser feitos. Notadamente um não-"ferdydurkista", no posfácio Barcinski afirma não ter ousado transformar alguns substantivos (fundamentais para o livro) em adjetivos, fugindo ao original. Ora, em tal situação se deve respeitar o que foi cometido pelo autor, ele próprio um especialista em ousadias.
A mão do destino se plasmou para Gombrowicz na forma do navio que o levou à Argentina na véspera da invasão nazista da Polônia. Não é de estranhar que, na capa, o logotipo da editora traga uma bicicleta, e não um transatlântico. É mais um inexplicável "ferdydurkismo".


JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de "Hotel Hell" (Livros do Mal), entre outros

FERDYDURKE     
Autor: Witold Gombrowicz
Tradução: Tomasz Barcinski
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 49 (352 págs.)


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