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CONTARDO CALLIGARIS
O álbum de fotografias e a solidão
Estréia amanhã, no Brasil,
"Retratos de uma Obsessão",
de Mark Romanek, em que Robin
Williams é Sy (pronuncia-se sái),
o gerente do estande de fotografia
de um grande supermercado.
Há anos, a família Yorkin leva
para Sy suas fotos de férias, de festas e de outros momentos memoráveis. Ele revelou e, portanto, viu
o pequeno Jakob crescer, de aniversário em aniversário, assim como revelou e viu, ano após ano, os
beijos e os gestos amorosos dos
pais de Jakob.
Sy imprime e guarda cópia extra de cada rolo de filme da família Yorkin. Ele quer um pedaço do
mundo de carinhos e alegria que
aparece, na verdade, nos álbuns
de quase todas as famílias. Sy não
é louco. Ele apenas não tem álbum próprio e tenta existir no álbum dos outros. Por que não seria
um tio da família Yorkin? Afinal,
ele tem as mesmas lembranças,
pois conhece todas as fotos.
Sy não tem amigos nem família.
Depois do trabalho, come sozinho
num restaurante e volta para
uma casa vazia e silenciosa. Aqui,
ele olha um pouco de televisão
(que pode funcionar como uma
espécie de álbum de família coletivo) e contempla as fotos da família Yorkin, da qual ele, em seus
devaneios, é um membro adotivo.
Todos justificamos nossa vida
pretendendo pertencer a uma nação, a uma religião, a um bairro,
a uma torcida ou aos amigos da
padaria, grupos cujos membros,
em geral, mal se lembram de nossa existência. Figuramos (ou imaginamos figurar) felizes na foto-recordação da saída da igreja, do
desfile da festa nacional ou da
volta do estádio. Por que Sy não
faria parte dos Yorkins, da mesma forma? Nada demais nisso.
O problema é outro: será que os
Yorkins seriam uma família se
eles deixassem cair o sorriso que é
de praxe no álbum de fotografias?
Sy descobre inesperadamente (e a
coisa lhe é intolerável) que, atrás
das fotografias dos Yorkins, se esconde uma realidade imperfeita.
As imagens mentem.
É sempre assim: nossos álbuns
de fotografias colecionam momentos ternos e engraçados que
levamos a efeito de propósito,
com o intento de os registrar e os
incluir na nossa história. Nas festas de família, a câmara instiga
convidados e comensais ao sorriso ou ao riso: todos são transformados em farsantes e obrigados a
representar no presente a imagem
do que será seu passado feliz,
aquele tempo em que "olha só,
lembra como a gente estava
bem?".
Claro, a vida familiar é uma
empresa difícil: é preciso (ou recomendável) constituir alguma
unidade a partir de desejos e esperanças que discordam. Nos separam os egoísmos ordinários, as
fantasias singulares, as vontades
irrenunciáveis de aventuras
(sempre decepcionantes). Um auxílio contra esse descompasso é o
álbum de fotografias, em que os
membros da família idealizam
sua convivência, encenando e
acumulando instantâneos de felicidade conjugal e familiar. Por
fictícias que sejam, essas imagens
produzidas constituem a única
memória comum. É fácil verificar
sua importância quando, nas separações ou na divisão das heranças, chega a hora de dividir as
fotos. Naturalmente, todos os álbuns se parecem: poucos casais se
dão o trabalho de inventar uma
ficção original. A maioria atua
segundo roteiros que já existem:
contentam-se em sorrir na hora
do clique.
A maior solidão, desse ponto de
vista, é a ausência de um parceiro
com quem bater fotos e compor
um álbum. Estou sozinho se não
encontro ninguém disposto a fazer comigo as caretas necessárias
para que nossa foto proclame ao
mundo e ao futuro: "Olhem para
nós, aqui, felizes".
Sy está sozinho. Por que sua
fantasia preferida é um álbum de
fotografias de família? Não poderia, por exemplo, ter um desejo sexual um pouco torto, com o qual
divertir-se? Não poderia frequentar clubecos de striptease ou dedicar-se à sinuca? O fato é que vivemos numa época de extrema valorização do casamento e da família. Os solitários, para nós, são
fracassados relacionais. A vida
solteira pode ter graça televisiva
(como em "Seinfeld" ou
"Friends"), mas apenas como aspiração, mais ou menos falida, a
compor uma relação. Os conselhos aos celibatários são sempre
conselhos para encontrar alguém
com quem inaugurar, "enfim",
um álbum.
Por causa dessa valorização
quase exclusiva da vida familiar,
os casais não sabem relacionar-se
com os solitários. Quando compomos um casal e temos os álbuns
de nossas fotos na estante da sala
(sem contar as que enquadramos
e disseminamos pela casa), achamos fácil lidar com outros casais.
É só tirar fotos a quatro (ou outros múltiplos pares) e prever duplicata para os álbuns de todos.
Mas os celibatários apresentam
dupla ameaça. Ou estão procurando parceiro, e ninguém quer
um predador dentro de casa, ou
estão bem assim, sozinhos, e ninguém quer saber de uma vida que
pareça contente e seja diferente
daquela que imortalizamos esforçadamente em nossos álbuns.
É uma pena. Num outro mundo, os Yorkins poderiam ter convidado Sy para ser seu amigo e tio
de Jakob. A vida e o álbum da família, quem sabe, se tornassem
mais interessantes.
ccalligari@uol.com.br
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