São Paulo, quinta-feira, 05 de novembro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Crítica/"Shirin"

Longa é experiência radical que renova relação com cinema

Kiarostami filma apenas reações da plateia à história de amor entre príncipes

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Há mais ou menos 30 anos, Kiarostami coloca de pé, filme após filme, um modo de relação absolutamente original com o cinema. Já não se trata de um espetáculo em que alguém (espectador) assiste a algo (filme) projetado numa tela.
As coisas são mais complexas. "Filme" passa a definir a relação entre as imagens propostas e o espectador. Daí as reações tão radicais a seus filmes: ama-se ou odeia-se. Deixa-se a sala (no meio do filme, em geral) com a sensação de não ter visto nada, de ter contemplado uma tela em branco, ou, ao contrário, experimenta-se todo o encantamento que o cinema pode proporcionar.
A radicalidade da proposta se acentuou nos trabalhos mais recentes, sobretudo nos planos de "Five": algumas paisagens, por vezes quase fixas, sendo a última (a tempestade) quase não visível, pois feita à noite.
"Shirin" parte desse ponto e fala do amor entre a princesa armênia Shirin e o príncipe persa Khosrow. Mas essa história não veremos. Só ouviremos os sons. O que vemos é a plateia (um grupo de 114 atrizes iranianas, mais Juliette Binoche e alguns homens) que acompanha atentamente a história e a ela reage. Escutamos o texto.
É como se a tela ocupasse um ponto intermediário entre as duas plateias, a nossa e a delas, mas só fosse visível a elas.
Quanto a nós, "vemos" pelos olhos delas, pelas reações.
Algumas dúvidas ficam: por que os homens são praticamente excluídos das plateias? Que sentidos podem haver nessa história de príncipes depostos, de lutas em que o amor e o poder acham-se imbricados, inseparáveis? Haverá insinuações políticas na epopeia de Khosrow, que, para recuperar o trono, pede ajuda aos romanos, mas, em troca, precisa se casar com Maryam, filha do imperador, deixando a amada Shirin?
Não sabemos porque não pertencemos a essa tradição e, de todo modo, não importa.
Durante a narração, não sabemos se a história de amor cujos caminhos são escritos pelo acaso ocorre no nível do sonho, da ilusão, da visão ou da realidade.
Ou tudo ao mesmo tempo.
O que vemos por 90 minutos é a nossa própria imaginação gravada no rosto das espectadoras. "Seu rosto está gravado em meu olhar", diz a horas tantas Farhad, o geômetra. É nos olhos e nos sonhos que tudo acontece. Dificilmente veremos tão cedo uma experiência tão radical quanto "Shirin".


SHIRIN

Quando: hoje, às 14h30, na Cinemateca
Classificação: 16 anos
Avaliação: ótimo




Texto Anterior: Crítica/"Ninguém Sabe dos Gatos Persas": Iraniano foragido move-se entre o riso e a tragédia
Próximo Texto: Comida: O crime da mala
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.