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COMIDA
O crime da mala
Chefs de cozinha e viajantes trazem na mala produtos de origem animal e vegetal proibidos pelo
Ministério da Agricultura; alguns tentam driblar a burocracia, outros, desconhecem a lei
LUIZA FECAROTTA
DA REPORTAGEM LOCAL
Começou a temporada de
trufas, os raros cogumelos subterrâneos chamados por Bril
lat-Savarian de "diamante da
cozinha". Caçadas por cachorros treinados, marcam, nesta
época, menus sazonais lançados em diversos restaurantes
na cidade.
O que pouca gente sabe, no
entanto, é que, antes do início
da temporada, alguns chefs de
cozinha viajam até a Itália para
trazer o fungo na mala... escondido. A lei proíbe a entrada de
produtos de origem vegetal e
animal no país sem autorização
prévia do Ministério da Agricultura. "A agropecuária é extremamente importante para a
economia brasileira. Precisamos evitar a disseminação de
doenças e pragas", diz o coordenador-geral do Vigiagro (Serviço de Vigilância Internacional
do Ministério da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento), Oscar Rosa de Aguir Filho.
Fabrízio Fasano, 74, presidente da Associação Brasileira
de Bebidas, que hoje importa
legalmente ingredientes da Itália para o grupo Fasano, relembra os tempos em que trazia
trufas "na mão, no bolso, na
mala, em caixinhas de isopor..."
E as trufas não estão sozinhas. Toneladas de alimentos
são apreendidas por ano nas alfândegas -e depois incineradas. Desde janeiro, só no Aeroporto de Cumbica, em Guarulhos, foram confiscadas 20 toneladas. No Rio, uma apreensão de caviar imperial iraniano,
que tinha por destino o restaurante Eñe, em São Paulo, contribuiu para as estatísticas.
Flávio Miyamura, 25, chef da
casa, contou que a importação
foi barrada no aeroporto em
agosto, pois "a marca não tinha
os papéis necessários para a
importação". O prejuízo foi
grande: cerca de 10 mil.
Apreensão
A Folha acompanhou a chegada de três voos internacionais, no Aeroporto de Cumbica, em outubro. Alguns viajantes que tiveram suas bagagens
vistoriadas não tinham conhecimento da lei de importação
de gêneros alimentícios. Segundo o ministério, há "grande
esforço para divulgar a legislação" (leia ao lado).
Vindo da Bolívia, um passageiro pediu para levar sua mercadoria: "É a primeira vez que
venho de avião para cá. De ônibus, eu sempre trouxe. De
avião não pode? É pouquinho,
por favor...?" Da Espanha, chegaram itens como frutos do
mar enlatados, presunto cru
espanhol, salames.
Voos vindos da China, no entanto, têm recorde de ocorrências. "No auge da gripe aviária,
com gente morrendo, uma passageira trouxe para o Brasil
dois quilos de língua de frango
da China. O produto foi
apreendido e destruído imediatamente", conta o coordenador-geral do Vigiagro, que
também diz que, em países como Austrália e Chile, passageiros pegos na alfândega com
produtos proibidos de ingressar no país devem pagar multas, diferentemente do Brasil,
onde só há apreensão.
Malas feitas
"Eu fui "preso" uma vez. Voltei da Itália com uma mala de
alcachofras e tive de passar pelo Ministério da Agricultura. O
fiscal, que riscava as bagagens
vistoriadas com um giz, foi chamado para uma ligação. Não sei
o que deu em mim: peguei o giz,
risquei minha mala e fugi. (...)
Me pegaram, me trouxeram
com as pernas para o ar e eu
perdi a mercadoria. Foi tudo
incinerado."
É assim que Rogério Fasano,
45, do grupo Fasano, relembra
a cena de 1997, quando ainda
não importava alcachofras por
vias legais.
Nos anos 1990, ele vivia "de
favor", pedia para quem viesse
da Itália para trazer ingredientes na mala. Hoje, depois de
uma década, o grupo importa
oficialmente trufas, vinhos e
até alcachofras. "Demorou um
ano para conseguirmos todos
os registros para trazer as alcachofras castraure. O produtor
abraçou a causa. Ele saía de Veneza de trem e seguia até Padova por uma hora para ir ao Ministério da Agricultura local.
Depois, chá de cadeira. Sempre
faltava um registro."
Para Fabrízio Fasano, "a burocracia impera no Brasil. Para
importar um laticínio ou um
embutido da Itália, por exemplo, não basta a autorização do
Ministério da Agricultura de lá.
É preciso que o ministério brasileiro faça a vistoria do estabelecimento in loco, se não, não é
possível importar."
Chefs internacionais
Uma lista enorme de ingredientes deixou à beira de um
ataque de nervos os organizadores do Jantar das Gerações,
realizado no último dia 26, no
hotel Grand Hyatt (SP). "Vários
ingredientes não encontramos
aqui no Brasil. Tentamos importar, mas é impossível. Gastamos o triplo para comprar
aqui mesmo", diz a organizadora Mariella Lazaretti, 47.
Relatos sobre o jantar do ano
anterior, que trouxe Ferran
Adrià ao país, e os perrengues
para trazer alguns ingredientes
estão reunidos no livro "O Jantar do Século", recém-lançado
pela editora Senac (R$ 120).
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