São Paulo, quinta-feira, 05 de novembro de 2009

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NINA HORTA

O livro de todos os sentidos


Implico com o linguajar dos franceses em matéria de comida; não perdem ocasião de compará-la ao sexo


VI QUE a Companhia das Letras lançou um livro, "A Morte do Gourmet", de Muriel Barbery. Comecei a ler afoitamente, como sempre faço, sem prestar atenção ao nome do livro ou tentar saber alguma coisa da autora. Lá pelo terceiro capítulo, já comecei a implicar com a linguagem rebuscada.
Ora, isso é coisa de francês! Nem existem essas palavras em inglês... E não existiam mesmo, o livro foi escrito em francês, "La Gourmandise", traduzido para "A Morte do Gourmet" -e implico sobremaneira com o linguajar dos franceses em matéria de comida. Não perdem uma ocasião de compará-la ao sexo, e haja adjetivo para descrever a coisa mais básica da vida que é comer.
Falando das mulheres, cozinheiras caseiras, acha que são de uma sensualidade tórrida e que falar de "carne" evoca tanto os prazeres da boca quanto os do amor.
"A sutileza do carinho do primeiro sushi no palato não tem mais segredo para mim; e bendito o dia em que descobri em minha língua o aveludado inebriante e quase erótico da ostra que se segue à lasquinha de pão com manteiga salgada. Despojei com tanta finura e brio sua delicadeza mágica que o bocado divino se tornou para todos um ato religioso."
Prefiro os ingleses, com aquela língua mais econômica, mais sem frescura, que trata a comida com mais naturalidade, tentando evitar os orgasmos múltiplos. Mas, implicâncias com o francês gastronômico à parte, é um romance pequenino sobre a vida de um grande crítico culinário que está na cama e vai morrer dentro de quarenta e oito horas.
O livro é dividido em capítulos muito curtos, cada um escrito por um membro da família, por amigos, por amantes, por apreciadores de comida como ele e que, caleidoscopicamente, vão tecendo sua biografia. Enquanto isso, o agonizante obsessivamente procura um sabor particular de alguma coisa que ele deseja mas que não sabe o que é.
Teria vindo da infância, da comida da avó, impressão que gravou muito antes de ser elevado ao papa dos críticos? Tem medo de que seja um sabor medíocre associado a um momento muito feliz, a uma preciosa emoção. Passa pelo tomate, pelo sashimi, pelo pão, pela torrada, pelos sorbets, pela maionese feita em casa, pelo uísque... Esse sabor lhe revelaria um dom de viver até o momento incompreendido. Mas que sabor é?
Desenrola a sua vida na memória tentando descobrir a madeleine.
Eu, com minha deformação profissional, só achei esquisito tanto poder e riqueza num crítico de comida, mesmo que seja o melhor do mundo, e, se aí havia uma metáfora qualquer ou ironia subentendida, no barroco da linguagem, uma crítica ao jargão dos críticos, perdi.
Fiquei atraída pelas descrições dos cheiros, da textura, da aparência do sentimento de felicidade após um almoço bom debaixo da sombra de uma árvore, da capacidade de sentir prazer com pouco.
A autora (de muito sucesso, com tiragens fabulosas de livros) dá um banho de sensações e de exatas descrições de comidas e de pequenos achados literários. Parece brincar num laboratório para ver se consegue, por escrito, mostrar o gosto de um tomate no pé, de uma sardinha grelhada.
Por mais que eu fale mal dos transbordamentos franceses na culinária, tenho que confessar que adoraria ter escrito esse livro, nesse formato e com essa capacidade fora do comum de lidar com todos os sentidos.
Muriel Barbery escreve bem. E, além de escrever sobre comida com esse "élan", é um fiapo magrelo de mulher que hoje mora no Japão. Na última página, agradece a Pierre Gagnaire pelo cardápio e por sua poesia e já escreveu o seu segundo livro, "A elegância do Ouriço", também traduzido pela Companhia das Letras, que já mandei vir da Livraria Cultura.

ninahorta@uol.com.br


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