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TEATRO
Vilela vence fronteira entre realidade e delírio
NELSON DE SÁ
enviado especial ao Rio
Diogo Vilela crava os olhos à
frente, os olhos com a tristeza do
mundo, os cabelos raspados, o
rosto esgotado, e solta uma risada
larga, sem fim, excessiva, estranhamente verdadeira.
Blecaute. "Dyario de um Louco", em cartaz no Rio, termina
com um instante de sublime estranhamento que contém, em segundos, o que foi toda a apresentação.
Uma confusão sem fronteiras entre a tristeza e a fantasia, atravessando de uma a outra sem deixar
tempo para o juízo.
Ele faz Propritchitchine, um burocrata isolado, preso na solidão
em São Petersburgo, a capital administrativa da Rússia czarista.
Um universo partido em castas fechadas, em que um funcionário
público, como ele, não enxerga
saídas no mundo real.
Propritchitchine escapa para a
fantasia. De início um pouco contido, com um sonho amoroso como todos têm, de paixão por uma
jovem linda, delicada, inalcançável, a filha do austero e importante
diretor do departamento em que
ele trabalha.
Mas logo vai além. Sem ter como
cruzar o limite de sua camada, de
sua função social, ele a encontra
um dia, nada faz -e acaba por ouvir uma cadela, que é da jovem,
falar. Não apenas falar mas, depois, escrever cartas.
É uma comédia, o que Diogo Vilela conduz como ninguém, e também uma tragédia, na confusão
própria da peça. Do riso ao desalento, da realidade à loucura, em
ciclos, o que se vê é um ator em
estado de graça.
"Dyario de um Louco" é originalmente um conto. Ou melhor, é
um conto que, originalmente, foi
uma peça inacabada.
"A Ordem de Vladimir de Terceira Classe" começou a ser escrita por Gogol, que parou por acreditar que não venceria a censura.
Uma de suas cenas levava o título
de "O Processo".
O conto, agora monólogo, dela
proveniente é um libelo contra a
burocracia, as restrições sociais,
mas é muito mais.
O que talvez o torne tão presente, o que talvez torne Gogol tão
"nosso contemporâneo" é como
o seu peculiar enquadramento romântico, derivado do movimento
dominante na época, espelha o
neo-romantismo contemporâneo,
fim de milênio. Agora como em
Gogol, um romantismo que fantasia para em seguida enfrentar a parede da realidade.
A tragédia de Axenty-Ivanovitch
Propritchitchine, o nome do personagem, é que ele não vê a parede, vai de um lado a outro até não
voltar mais. A cena final apresenta
o burocrata apaixonado preso e
torturado num manicômio.
O extremo de seu delírio acontece quando incorpora Fernando 8º,
que seria ninguém menos do que o
herdeiro do trono espanhol. O
funcionário já não se contenta em
sonhar com a filha do diretor. Ele
tem sangue nobre.
Mas o novo rei espanhol, perdido no departamento, logo se vê
apanhando, sendo torturado, mas
não num simples manicômio: é a
Inquisição espanhola. No vaivém,
o humor é irresistível.
Nikolai Gogol, que foi um funcionário público, morreu em 1852,
num manicômio.
Não viveu mais do que 43 anos, o
bastante para erguer uma obra
que confundiu classificações, com
toques entre românticos e realistas, por vezes citados como místicos ou simbolistas, por vezes como psicológicos.
Fundamentou a grande literatura russa, de Tolstoi a Nabokov,
passando por Tchecov. "Nós todos saímos de Gogol", escreveu
Dostoievsky. A grandeza de Gogol
era desconhecida dos palcos recentes brasileiros, onde o mais que
se recorda é um algo farsesco "O
Inspetor Geral".
Agora, pelas mãos de Diogo Vilela, ele chegou.
Peça: Dyario de um Louco
Tradução: Luís de Lima
Direção: Marcus Alvisi
Onde: teatro Casa da Gávea (pça. Santos
Dumont, 116, Rio de Janeiro, tel.
021/239-3511)
Quando: qui e sáb, às 21h30; dom, às 20h
Quanto: R$ 25
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