São Paulo, sexta, 6 de fevereiro de 1998

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TEATRO
Vilela vence fronteira entre realidade e delírio

NELSON DE SÁ
enviado especial ao Rio

Diogo Vilela crava os olhos à frente, os olhos com a tristeza do mundo, os cabelos raspados, o rosto esgotado, e solta uma risada larga, sem fim, excessiva, estranhamente verdadeira.
Blecaute. "Dyario de um Louco", em cartaz no Rio, termina com um instante de sublime estranhamento que contém, em segundos, o que foi toda a apresentação. Uma confusão sem fronteiras entre a tristeza e a fantasia, atravessando de uma a outra sem deixar tempo para o juízo.
Ele faz Propritchitchine, um burocrata isolado, preso na solidão em São Petersburgo, a capital administrativa da Rússia czarista. Um universo partido em castas fechadas, em que um funcionário público, como ele, não enxerga saídas no mundo real.
Propritchitchine escapa para a fantasia. De início um pouco contido, com um sonho amoroso como todos têm, de paixão por uma jovem linda, delicada, inalcançável, a filha do austero e importante diretor do departamento em que ele trabalha.
Mas logo vai além. Sem ter como cruzar o limite de sua camada, de sua função social, ele a encontra um dia, nada faz -e acaba por ouvir uma cadela, que é da jovem, falar. Não apenas falar mas, depois, escrever cartas.
É uma comédia, o que Diogo Vilela conduz como ninguém, e também uma tragédia, na confusão própria da peça. Do riso ao desalento, da realidade à loucura, em ciclos, o que se vê é um ator em estado de graça.
"Dyario de um Louco" é originalmente um conto. Ou melhor, é um conto que, originalmente, foi uma peça inacabada.
"A Ordem de Vladimir de Terceira Classe" começou a ser escrita por Gogol, que parou por acreditar que não venceria a censura. Uma de suas cenas levava o título de "O Processo".
O conto, agora monólogo, dela proveniente é um libelo contra a burocracia, as restrições sociais, mas é muito mais.
O que talvez o torne tão presente, o que talvez torne Gogol tão "nosso contemporâneo" é como o seu peculiar enquadramento romântico, derivado do movimento dominante na época, espelha o neo-romantismo contemporâneo, fim de milênio. Agora como em Gogol, um romantismo que fantasia para em seguida enfrentar a parede da realidade.
A tragédia de Axenty-Ivanovitch Propritchitchine, o nome do personagem, é que ele não vê a parede, vai de um lado a outro até não voltar mais. A cena final apresenta o burocrata apaixonado preso e torturado num manicômio.
O extremo de seu delírio acontece quando incorpora Fernando 8º, que seria ninguém menos do que o herdeiro do trono espanhol. O funcionário já não se contenta em sonhar com a filha do diretor. Ele tem sangue nobre.
Mas o novo rei espanhol, perdido no departamento, logo se vê apanhando, sendo torturado, mas não num simples manicômio: é a Inquisição espanhola. No vaivém, o humor é irresistível.
Nikolai Gogol, que foi um funcionário público, morreu em 1852, num manicômio.
Não viveu mais do que 43 anos, o bastante para erguer uma obra que confundiu classificações, com toques entre românticos e realistas, por vezes citados como místicos ou simbolistas, por vezes como psicológicos.
Fundamentou a grande literatura russa, de Tolstoi a Nabokov, passando por Tchecov. "Nós todos saímos de Gogol", escreveu Dostoievsky. A grandeza de Gogol era desconhecida dos palcos recentes brasileiros, onde o mais que se recorda é um algo farsesco "O Inspetor Geral".
Agora, pelas mãos de Diogo Vilela, ele chegou.


Peça: Dyario de um Louco
Tradução: Luís de Lima
Direção: Marcus Alvisi
Onde: teatro Casa da Gávea (pça. Santos Dumont, 116, Rio de Janeiro, tel. 021/239-3511) Quando: qui e sáb, às 21h30; dom, às 20h Quanto: R$ 25



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