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O abominável umbigo do desembargador
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
Era uma vez um desembargador que tinha um umbigo. O
nome do desembargador era
Menezes, alguma coisa de Menezes, talvez João da Silva Menezes ou simplesmente João
Menezes. O nome do umbigo
era umbigo mesmo, nunca
ninguém se lembrou de dar
nome a um umbigo, daí serem
todos anônimos, embora indispensáveis. Todo umbigo devia ter nome, se possível tirado
da mitologia grega ou do teatro clássico, como os planetas,
as moléstias complicadas e os
complexos descobertos por
Freud. Mas isso não vem ao
caso. Com nome ou sem nome,
o desembargador tinha um
umbigo e se chamava Menezes,
não o umbigo, mas o desembargador.
Até aí não há novidade. Todos os homens, de uma forma
ou outra, têm um umbigo
-primeira das muitas cicatrizes que ele arranja pela vida
afora- e os desembargadores
também. Pode-se até dizer que
cada desembargador merece o
umbigo que tem, daí que muita gente nem merece o umbigo
que tem.
Apesar disso, o desembargador nunca dera importância
ao umbigo. Levava-o a todos
os lugares e partes, ao lar, ao
leito conjugal, ao leito extraconjugal -rosnavam as más
línguas (e as boas também)
que o desembargador tinha
concubinas, pois se deleitava
com as concubinas com o mesmo umbigo com que se deleitava com a esposa. Levava também o mesmo umbigo à corte,
ao Tribunal de Recursos, à Vara das Execuções Penais, ao
campo de futebol, às igrejas e,
no dia em que viajou e foi conhecer os portos do mar Egeu,
passeou seu umbigo pelas
águas históricas do antigo
mar.
Era um sinal de alienação
moral e cívica esse, o de um desembargador levar seu umbigo
a todos os lugares e partes. Buda, filósofo e místico, sempre
olhou o umbigo e nele achou a
sabedoria para seus adeptos e
para si mesmo. Cristo exibiu
do alto da cruz a milagrosa
marca de que o Verbo havia se
feito Carne por meio do Seio
Puríssimo da Virgem Maria.
Maomé não fez nada de importante com o seu umbigo e
por isso nunca passou de um
profeta barbado e desumbigado. Em compensação, suas filhas mais formosas inventaram uma dança que tem como
delicioso eixo o umbigo de
ventres brancos e arredondados.
Mas o desembargador Menezes não era Buda, nem Cristo,
nem Maomé, muito menos
uma dançarina da dança do
ventre. Era simplesmente o desembargador Menezes, talvez
João da Silva Menezes, que arrastava seu umbigo sem ter
consciência de que, no fundo e
na treva, o umbigo preparava
a sua vingança. O desembargador não conhecia aqueles
tratados persas sobre a influência umbilical dos umbigos na vida e no comportamento das pessoas que portam
umbigo, sobretudo dos desembargadores. Não lera os manuscritos assírios que prognosticavam a perdição da espécie
humana por meio do umbigo,
que todos um dia estourariam
ao mesmo tempo e as vísceras
dos homens, desembargadores
ou não, entupiriam as ruas e os
caminhos, a humanidade se
afogaria num oceano de tripas
sangradas e imundas.
Não lera sequer a terrível advertência de Taritus de Alexandria (embora nascido na
Babilônia), que dizia: "Ut umbelicus sit virtus et potestatis
sunt", o que significa, aproximadamente, que virtude e poder dependem de um umbigo
virtuoso e poderoso.
O desembargador não era
persa, nem meda, nem assírio,
nem babilônico. Era pura e belamente baiano e continuava
arrastando seu baiano umbigo
em ignorância e ignomínia.
Até que um dia teve um câncer no duodeno e foi parar no
divã de um mestre na psicanálise, linha ortodoxa, tão ortodoxo que achava duodeno e
ego a mesma coisa. O camarada pediu para ver o umbigo e o
desembargador hesitou um
pouco. Nunca ninguém lhe pedira isso. Nascera, crescera, estudara os códigos, casara, pecara, viajara, fora promovido,
firmara jurisprudência sobre
os delitos do usucapião -e
nunca lhe haviam pedido contas do umbigo.
Levantou as fraldas da camisa, temeroso de que por obra
de algum feitiço baiano ou por
deformidade até então insuspeitada, não tivesse umbigo algum. Foi com alívio que verificou aquele buraco que, com o
tempo, ficara mesmo parecido
com a cicatriz de uma laranja
da China.
- Eis o meu umbigo! -disse
com algum alívio e até com um
pouco de orgulho, como se lhe
tivessem pedido contas do orçamento do Tribunal de Recursos.
O psicanalista olhou, tornou
a olhar, levantou a cara e perguntou:
- Mas onde está seu umbigo?
- Aqui. Aqui onde está o
meu dedo.
E o desembargador -que
além de baiano era gordo e untuoso- apontou com o dedo o
sítio onde normalmente os desembargadores de seu feitio e
peso costumam portar o umbigo.
- Mas isso não é um umbigo. É um relógio! -exclamou
o psicanalista estupefato, já
prevendo um complicado caso
de transferência uterina em
forma de câncer no duodeno.
- Relógio? Por favor, que
horas está marcando?
- Um quarto para as onze.
- Então até logo! Estou
atrasado, tenho um embargo
para despachar.
E embarcou num fogoso corcel que tinha um umbigo na
testa, onde, eventualmente,
brilhava uma estrela.
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