São Paulo, sexta, 6 de fevereiro de 1998

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O abominável umbigo do desembargador

CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial

Era uma vez um desembargador que tinha um umbigo. O nome do desembargador era Menezes, alguma coisa de Menezes, talvez João da Silva Menezes ou simplesmente João Menezes. O nome do umbigo era umbigo mesmo, nunca ninguém se lembrou de dar nome a um umbigo, daí serem todos anônimos, embora indispensáveis. Todo umbigo devia ter nome, se possível tirado da mitologia grega ou do teatro clássico, como os planetas, as moléstias complicadas e os complexos descobertos por Freud. Mas isso não vem ao caso. Com nome ou sem nome, o desembargador tinha um umbigo e se chamava Menezes, não o umbigo, mas o desembargador.
Até aí não há novidade. Todos os homens, de uma forma ou outra, têm um umbigo -primeira das muitas cicatrizes que ele arranja pela vida afora- e os desembargadores também. Pode-se até dizer que cada desembargador merece o umbigo que tem, daí que muita gente nem merece o umbigo que tem.
Apesar disso, o desembargador nunca dera importância ao umbigo. Levava-o a todos os lugares e partes, ao lar, ao leito conjugal, ao leito extraconjugal -rosnavam as más línguas (e as boas também) que o desembargador tinha concubinas, pois se deleitava com as concubinas com o mesmo umbigo com que se deleitava com a esposa. Levava também o mesmo umbigo à corte, ao Tribunal de Recursos, à Vara das Execuções Penais, ao campo de futebol, às igrejas e, no dia em que viajou e foi conhecer os portos do mar Egeu, passeou seu umbigo pelas águas históricas do antigo mar.
Era um sinal de alienação moral e cívica esse, o de um desembargador levar seu umbigo a todos os lugares e partes. Buda, filósofo e místico, sempre olhou o umbigo e nele achou a sabedoria para seus adeptos e para si mesmo. Cristo exibiu do alto da cruz a milagrosa marca de que o Verbo havia se feito Carne por meio do Seio Puríssimo da Virgem Maria. Maomé não fez nada de importante com o seu umbigo e por isso nunca passou de um profeta barbado e desumbigado. Em compensação, suas filhas mais formosas inventaram uma dança que tem como delicioso eixo o umbigo de ventres brancos e arredondados.
Mas o desembargador Menezes não era Buda, nem Cristo, nem Maomé, muito menos uma dançarina da dança do ventre. Era simplesmente o desembargador Menezes, talvez João da Silva Menezes, que arrastava seu umbigo sem ter consciência de que, no fundo e na treva, o umbigo preparava a sua vingança. O desembargador não conhecia aqueles tratados persas sobre a influência umbilical dos umbigos na vida e no comportamento das pessoas que portam umbigo, sobretudo dos desembargadores. Não lera os manuscritos assírios que prognosticavam a perdição da espécie humana por meio do umbigo, que todos um dia estourariam ao mesmo tempo e as vísceras dos homens, desembargadores ou não, entupiriam as ruas e os caminhos, a humanidade se afogaria num oceano de tripas sangradas e imundas.
Não lera sequer a terrível advertência de Taritus de Alexandria (embora nascido na Babilônia), que dizia: "Ut umbelicus sit virtus et potestatis sunt", o que significa, aproximadamente, que virtude e poder dependem de um umbigo virtuoso e poderoso.
O desembargador não era persa, nem meda, nem assírio, nem babilônico. Era pura e belamente baiano e continuava arrastando seu baiano umbigo em ignorância e ignomínia.
Até que um dia teve um câncer no duodeno e foi parar no divã de um mestre na psicanálise, linha ortodoxa, tão ortodoxo que achava duodeno e ego a mesma coisa. O camarada pediu para ver o umbigo e o desembargador hesitou um pouco. Nunca ninguém lhe pedira isso. Nascera, crescera, estudara os códigos, casara, pecara, viajara, fora promovido, firmara jurisprudência sobre os delitos do usucapião -e nunca lhe haviam pedido contas do umbigo.
Levantou as fraldas da camisa, temeroso de que por obra de algum feitiço baiano ou por deformidade até então insuspeitada, não tivesse umbigo algum. Foi com alívio que verificou aquele buraco que, com o tempo, ficara mesmo parecido com a cicatriz de uma laranja da China.
- Eis o meu umbigo! -disse com algum alívio e até com um pouco de orgulho, como se lhe tivessem pedido contas do orçamento do Tribunal de Recursos.
O psicanalista olhou, tornou a olhar, levantou a cara e perguntou:
- Mas onde está seu umbigo?
- Aqui. Aqui onde está o meu dedo.
E o desembargador -que além de baiano era gordo e untuoso- apontou com o dedo o sítio onde normalmente os desembargadores de seu feitio e peso costumam portar o umbigo.
- Mas isso não é um umbigo. É um relógio! -exclamou o psicanalista estupefato, já prevendo um complicado caso de transferência uterina em forma de câncer no duodeno.
- Relógio? Por favor, que horas está marcando?
- Um quarto para as onze.
- Então até logo! Estou atrasado, tenho um embargo para despachar.
E embarcou num fogoso corcel que tinha um umbigo na testa, onde, eventualmente, brilhava uma estrela.



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