São Paulo, sexta-feira, 06 de março de 2009

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Cinema/Estreias

Crítica/"Frost/Nixon"

Sem posição clara, retrato torna Nixon um estadista simpático

Longa reconstrói bastidores de célebre entrevista com o ex-presidente americano

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

"Frost/Nixon" tem pelo menos três focos de tensão. O primeiro vem no título e envolve o encontro de um apresentador da TV britânica, David Frost, que em 1977 promove uma série de entrevistas tendo em vista exclusivamente o seu sucesso pessoal, com um Richard Nixon disposto a usar os programas para retocar sua imagem, dilapidada pelo episódio de Watergate, que o levara à renúncia três anos antes. O segundo foco de tensão vem da permanente oscilação entre crença e descrença associada à imagem de Nixon criada por Frank Langella. Há momentos em que, fotografado de perfil, Langella é uma imagem verossímil de Richard Nixon. A maior parte do tempo, no entanto, devemos nos contentar com uma semelhança, digamos, interior: é o Nixon composto por Langella que pode interessar e mesmo nos pôr em contato com a complexa personalidade desse misto de estadista e vigarista, de grande homem pequeno -isso é o que afinal nos ficou de Nixon. O mesmo não acontece com o Frost criado por Michael Sheen, talvez pelo fato de nós aqui no Brasil não o conhecermos, mas também por ele não ter a mesma importância. Ou antes, sua importância deriva dessa narrativa. O fato é que Sheen já havia composto um David Blair impecável em todos os sentidos, em "A Rainha" (2006, de Stephen Frears).

Ambiguidade e mistério
O terceiro, e mais angustiante, diz respeito à evolução de Frank Langella. O tempo passou. O ex-Conde Drácula virou Nixon, mas seu rosto preserva a ambiguidade e o mistério, transmite o sentimento de que, por trás daqueles olhos, existe um abismo: nunca saberemos exatamente o quê. Mistério duplicado pelo que há de mais intrigante no filme: em dado momento, Nixon comenta com seu assessor sobre os sapatos mocassim de Frost, que considera afeminados.
É bem mais que uma observação "en passant": é toda uma visão de mundo que está ali, uma complexa ordem de ideias, envolvendo épocas, funções, importância pessoal etc. Todo o filme está aí, no desprezo de Nixon pelos sapatos de Frost: correlato do seu desprezo pelos adversários em Watergate (mas não só).
No epílogo do filme, Frost presenteia Nixon com um par de sapatos... mocassim. Prova de que compreendeu muito bem que o confronto subjacente à entrevista se desenvolvia em torno de valores, muito mais do que de fatos. Não é que Ron Howard, diretor do filme, não enfatize devidamente esse dado (sem exageros, inclusive): é que parece não se decidir entre o que ele contém e o restante do filme. Toda a questão do filme repousava numa tomada de posição clara. Entre mostrar o Nixon íntimo (e talvez salvar-lhe a memória) e expor o homem público e seus pecados, o filme termina por não fazer nem bem um, nem bem outro. Mas nos aproxima de Nixon, é inegável, e nessa medida produz uma imagem simpática do estadista. Real? É outra história. Visto de perto, até Jack, o Estripador, parece um bom rapaz.


FROST/NIXON
Produção: EUA/Inglaterra/França, 2008
Direção: Ron Howard
Com: Frank Langella, Michael Sheen
Quando: a partir de hoje no HSBC Belas Artes, Iguatemi Cinemark e circuito
Classificação: não indicado a menores de 12 anos
Avaliação: bom



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