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Cinema/Estreias
Crítica/"Frost/Nixon"
Sem posição clara, retrato torna Nixon um estadista simpático
Longa reconstrói bastidores de célebre entrevista com o ex-presidente americano
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
"Frost/Nixon" tem
pelo menos três focos de tensão. O primeiro vem no título e envolve o
encontro de um apresentador
da TV britânica, David Frost,
que em 1977 promove uma série de entrevistas tendo em vista exclusivamente o seu sucesso pessoal, com um Richard Nixon disposto a usar os programas para retocar sua imagem,
dilapidada pelo episódio de
Watergate, que o levara à renúncia três anos antes.
O segundo foco de tensão
vem da permanente oscilação
entre crença e descrença associada à imagem de Nixon criada
por Frank Langella. Há momentos em que, fotografado de
perfil, Langella é uma imagem
verossímil de Richard Nixon.
A maior parte do tempo, no
entanto, devemos nos contentar com uma semelhança, digamos, interior: é o Nixon composto por Langella que pode interessar e mesmo nos pôr em
contato com a complexa personalidade desse misto de estadista e vigarista, de grande homem pequeno -isso é o que
afinal nos ficou de Nixon.
O mesmo não acontece com
o Frost criado por Michael
Sheen, talvez pelo fato de nós
aqui no Brasil não o conhecermos, mas também por ele não
ter a mesma importância. Ou
antes, sua importância deriva
dessa narrativa. O fato é que
Sheen já havia composto um
David Blair impecável em todos os sentidos, em "A Rainha"
(2006, de Stephen Frears).
Ambiguidade e mistério
O terceiro, e mais angustiante, diz respeito à evolução de
Frank Langella. O tempo passou. O ex-Conde Drácula virou
Nixon, mas seu rosto preserva a
ambiguidade e o mistério,
transmite o sentimento de que,
por trás daqueles olhos, existe
um abismo: nunca saberemos
exatamente o quê. Mistério duplicado pelo que há de mais intrigante no filme: em dado momento, Nixon comenta com
seu assessor sobre os sapatos
mocassim de Frost, que considera afeminados.
É bem mais que uma observação "en passant": é toda uma
visão de mundo que está ali,
uma complexa ordem de ideias,
envolvendo épocas, funções,
importância pessoal etc. Todo
o filme está aí, no desprezo de
Nixon pelos sapatos de Frost:
correlato do seu desprezo pelos
adversários em Watergate
(mas não só).
No epílogo do filme, Frost
presenteia Nixon com um par
de sapatos... mocassim. Prova
de que compreendeu muito
bem que o confronto subjacente à entrevista se desenvolvia
em torno de valores, muito
mais do que de fatos.
Não é que Ron Howard, diretor do filme, não enfatize devidamente esse dado (sem exageros, inclusive): é que parece não
se decidir entre o que ele contém e o restante do filme. Toda
a questão do filme repousava
numa tomada de posição clara.
Entre mostrar o Nixon íntimo (e talvez salvar-lhe a memória) e expor o homem público e seus pecados, o filme termina por não fazer nem bem
um, nem bem outro. Mas nos
aproxima de Nixon, é inegável,
e nessa medida produz uma
imagem simpática do estadista.
Real? É outra história. Visto de
perto, até Jack, o Estripador,
parece um bom rapaz.
FROST/NIXON
Produção: EUA/Inglaterra/França,
2008
Direção: Ron Howard
Com: Frank Langella, Michael Sheen
Quando: a partir de hoje no HSBC Belas
Artes, Iguatemi Cinemark e circuito
Classificação: não indicado a menores
de 12 anos
Avaliação: bom
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