São Paulo, sexta-feira, 06 de março de 2009

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CARLOS HEITOR CONY

A inesquecível esquadra


Abri a cortina e vi oito navios de guerra à minha frente, dispostos simétricos, em linha


FAZ TEMPO, como em todas as manhãs, abri as cortinas da sala que ocupava na praia do Russel, bem em frente à baía de Guanabara, tendo Niterói ao fundo e o aterro do Flamengo aos lados. Geralmente, a paisagem não me surpreende: é a mesma dos meus anos de menino. Nasci, praticamente, vendo esta mesma coisa. À esquerda, o aeroporto Santos Dumont com os aviões da ponte aérea decolando e pousando a cada meia hora. À direita, espesso e azulado pelo sol que lhe bate em cheio, o Pão de Açúcar, logotipo de minha cidade e marco final do Atlântico que morre ao chegar às suas bordas, dando a impressão aos portugueses que aqui chegaram de ser a foz de um rio no janeiro de 1565.
No meio, bem, no meio, a baía propriamente dita de todos os dias, meses e anos, menos daquele: abri a cortina e vi oito navios de guerra à minha frente, simetricamente dispostos numa linha que tinha por base a entrada da barra e como utilidade... eis a questão! Consultei os entendidos. Em outros tempos, tantos navios à mostra seria sinal de golpe de Estado, deposição de presidentes da República. Quem sabe, uma invasão de potência estrangeira.
Tudo é possível -dizia o carioca Machado de Assis. Os mesmos entendidos me garantiram que ninguém estava interessado em invadir o Brasil por mar ou terra. Eliminando causas, cheguei à constatação de que os navios ali estavam para iniciar qualquer manobra de treinamento: como a baía não dá muito espaço, logo os navios sairiam barra afora para as regiões de Cabo Frio, onde geralmente acontecem exercícios de tiro naval.
Bem, comecei a trabalhar, atendi a algumas pessoas, escrevi duas ou três laudas de texto, recebi e dei telefonemas: os navios continuavam ali, sem se mexer. Saí para almoçar, voltei e os navios emplastrados bem em frente à minha janela. Pelo adiantado da tarde, já seria improvável a saída barra afora, a menos que houvesse perigo de guerra iminente. Mas vivemos em tempos de paz e a hipótese foi também descartada. Além do mais, lá pelas 17h os navios começaram a se movimentar, mas de retorno aos fundos da baía, às suas bases cotidianas e confortáveis.
O que teria sucedido ou deixara de suceder? Um alarme falso, uma ameaça de sabotagem? Nada disso. Fiz uma pesquisa particular entre colegas e nenhum deles soube explicar as razões daquela extraordinária movimentação naval.
Lembrei-me, ao cair da noite, de uma velha crônica de Humberto de Campos, o irreverente maranhense que dominou o jornalismo de sua época. Aconteceu aí pelos anos 30: um navio de guerra desgarrou-se das amarras que o prendiam e foi parar nas imediações de Botafogo.
Muitos cariocas se assustaram, temendo uma insurreição da esquadra, tal como a de João Cândido, que se revoltou contra a chibata usada pelos oficiais de então para punir a marujada. Humberto de Campos explicou a presença daquele navio aparentemente sem rumo: estava à procura de uma medalha de Nossa Senhora das Graças, que a filha do ministro da Marinha havia perdido durante um banho de mar na praia de Botafogo.
Esta hipótese também foi varrida: hoje não caem mais medalhas milagrosas e nenhum ministro faria uma coisa dessas, mobilizar a esquadra nacional para missão tão particular.
Mesmo assim, fiquei intrigado. Ao ir para casa, cerrei as cortinas da sala e decidi dar o visto pelo não visto. Fora a miragem inconsequente dos olhos vadios de um cronista vadio.
No dia seguinte, mal abri as mesmas cortinas, fiquei decepcionado: não havia navio algum ali em frente. Acionei um repórter amigo, o Tarlis Batista, famoso pela capacidade de tomar providências. Expliquei-lhe o pasmo da véspera e a decepção daquele dia, o que tinha havido e o que deixara de haver. Tarlis foi um dos primeiros caras deste mundo a ter um celular, aliás, não tinha um, tinha vários, pendurados no pescoço. Com a presteza que lhe dera fama e eficiência, ele ligou três quase ao mesmo tempo e me devolveu a tranquilidade. Nada demais, nem guerra, nem invasão nem procura de medalha alguma. A esquadra se movimentara para um documentário sobre o almirante Tamandaré.
Deviam ao menos ter me avisado.


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