São Paulo, domingo, 06 de abril de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Mônica Bergamo

bergamo@folhasp.com.br

Tuca Vieira/Folha Imagem
Mário Bortolotto e Guta Ruiz, em "Augustas"


Os amantes de Augusta

Um grupo de rapazes, olhos borrados de rímel e roupa preta da cabeça aos pés caminha rumo à estação de metrô na avenida Paulista. São seis e meia da manhã e a rua Augusta poderá, enfim, começar a dormir: os inferninhos fecham as portas e as últimas garotas deixam suas esquinas. "O chão tá muito nojento!", grita uma mulher, de dentro da boate Sarajevo -pequena porta vermelha incrustada na altura do número 1.300 da Augusta. Em seguida, surgem baldes e vassouras. O banheiro da balada será limpo para virar camarim do filme "Augustas", 90% rodado na rua underground de São Paulo, cenário da história fictícia de um jornalista que perde o emprego e se embrenha pelo mundo freak de uma das mais célebres vias paulistanas.

 

São 16 boates, 21 bares, padarias e lanchonetes e 26 salões de beleza -sim, 26 salões, só no lado do centro, no sentido oposto ao dos Jardins. O longa, aliás, terá uma cena de depilação num deles, além de outras num bar, num café, numa barraca de yakisoba, numa mesa de bilhar. "Desço essa rua desde 1976. É um território livre, sem paralelos no Brasil. O que hoje a gente chama de jovens "modernos" era a juventude transviada dos anos 60. Todos vinham e vêm pra cá", diz Francisco Cesar Filho, o Chiquinho, diretor do filme.
 

Para lugares como a sapataria Au Bottier, que vende botas de tudo quanto é tipo na Augusta desde 1968. "As chacretes vinham aqui comprar botas. A Wanderléia e a Elke [Maravilha] também. Hoje, é Joelma [da banda Calypso], é Deborah Secco, são vários artistas", conta a empresária Alegra, que, com a irmã, Mireille, toca a loja, repletas de botas vermelhas, prateadas, brancas, com acrílico, verniz, salto 15. "Parece coisa de drag ou de perua, mas tem muitas executivas e madames que compram aqui."
 

Morador da rua há dez anos, Alex Antunes, autor do livro "A Estratégia de Lilith", que inspira o filme "Augustas", diz que já está "pronto pra sair dela". "Cansa, né? Pra quem tem criança, o buzinaço das três da manhã é insuportável", diz. Taipã, 1 ano e oito meses, nasceu -literalmente- na rua Augusta. "A gente ligou para uma parteira quando as contrações aumentaram. Tomamos o chá [de ayahuasca, cipó amazônico psicotrópico], ela entrou no banho comigo, depois deu à luz... Foi lindo", conta na mesa do Eclético's Bar, apelidado de Raparigueiro Preguiçoso pela turma do Recife que freqüenta o boteco. "Antigamente, esse era o bar do Ceará. Tinhas umas pingas até com cobra dentro!"
 

Além do parto de Taipã, Alex tem outras memórias da rua Augusta. "Olha! Ali na frente tinha o maravilhoso... putz, como é o nome... o [restaurante] Long Champ! O concorrente do Frevinho", diz, apontando para uma lan house. "De uns três anos pra cá, é o momento das casas noturnas modernas. Mas isso acaba e ficam os inferninhos, os gigolôs, as prostitutas, que é a Augusta mais permanente." A de seu filme, que "não tem Vegas, não tem Outs, não tem Espaço Unibanco".
 

Ou a Augusta do francês Maurice Plas, 80 anos, figura célebre na rua. Há 50 anos, ele vende chapéus lá e só percebe que "a juventude está se pintando muito". Pintando? "Esses desenhos nos braços. Voilà, tatuagem! Eu não vou dar minha opinião sobre isso." Ele é do tempo em que a Augusta era "très chic". "Em Paris, quando eu ia ver desfiles, ouvia sempre: "Oh, la rue Augustá!" [carrega no sotaque francês] Agora, não. Freguês aqui é pobre." Na Plas Chapelaria, a boina mais barata sai por R$ 55 e um panamá importado pode custar R$ 660. Na loja vizinha de Plas, a Abusada, acaba de chegar a nova coleção. Não tem chapéu, mas sutiãs com strass e "muitos penduricalhos" que muitas vezes vão parar em figurinos de espetáculos de drag queens ou alternativos, como os da praça Roosevelt. Os modelos custam, em média, R$ 110.
 

"Hoje não tem mais tanto a coisa de a rua parar, as putas, os travestis sentados em cima dos carros. Isso rolava nos anos 80", diz o dramaturgo Mário Bortolotto, protagonista do filme. A escritora cult Clarah Averbuck -ou uma "moderna", como diria o diretor Chiquinho, com sapatilhas de plástico, pulseiras de acrílico, unhas vermelhas e sabe-se lá quantas tatuagens- interrompe: "Tem isso ainda, sim. Tem travesti e tal...". Para o escritor Alex, há explicação: "As putas são particularmente hostis com travestis. Tem um código de ética que é próprio delas". No set, Chiquinho ensina uma atriz a tirar a calcinha como fazem as garotas da Augusta. "Você dobra um joelho e puxa uma perna, depois a outra. Assim você termina com a calcinha na mão..." No bar, mais tarde, a escritora Clarah discursa: "Uma cidade sem uma dose de freak não é uma cidade, certo?".


Texto Anterior: Quem ri por último
Próximo Texto: Novo estilo aproxima televisão da internet
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.