São Paulo, sábado, 06 de julho de 2002

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PATRIMÔNIO

Dops é mais uma peça da revitalização do centro

GUILHERME WISNIK
ESPECIAL PARA A FOLHA

A reciclagem do edifício do Dops em centro cultural parece colocar inicialmente uma questão da ordem do patrimônio: o que é que realmente importa preservar? E, diante disso, de modo semelhante ao que ocorre com a construção de museus judeus sobre antigos campos de concentração, nos fazer oscilar entre a crença de que um uso democrático seja capaz de exorcizar o estigma de um edifício tão diretamente associado à tortura e a impressão de um certo cinismo no ar.
Por esse motivo, apesar de ter sido construído em 1914 como instalação de apoio da cia. Sorocabana de trens, sua atual reconversão expõe à primeira vista mais incômodos do que no caso da estação Júlio Prestes, ao lado, mais facilmente associada à "glória" da República Velha e do café.
Na verdade, a diferença estilística dos edifícios, revelada no tratamento das fachadas (tanto no tijolo aparente como no desenho dos caixilhos), ficou reforçada pela reforma do arquiteto Haron Cohen. Pois, sob os usuais preenchimentos da estrutura próprios do ecletismo, revelou-se um lugar construído com estrutura metálica. O projeto de reforma beneficiou-se do fato de o prédio possuir limpeza estrutural incomum, facilitando a organização dos fluxos e o aparecimento de generosos salões. Pés-direitos duplos contribuem para a intenção de criar um museu não convencional, ligado à exploração interdisciplinar de novas mídias. Mas a modesta importância arquitetônica sugere que sua preservação não se refere exatamente a uma questão de patrimônio.
A dualidade de estilos, "francês" e "inglês", não oculta o fato de haver entre estação Júlio Prestes e Dops uma continuidade fundamental. Pois assim como a primeira passou sete anos de hibernação, em processo de restauro à espera de um uso à altura de sua importância, ao segundo não se reservaria um destino diferente. Ambos os edifícios são peças-chave no projeto "Pólo Luz Cultural", que orienta o processo em curso de revitalização do centro da cidade impulsionado pelo Estado.
Ocorre que, ao lado do inegável ganho objetivo que cada um desses novos centros culturais representam, a suposta imunidade da cultura é usada para atenuar ou até mesmo apagar os conflitos em questão. Na "cracolândia" concentra-se grande parte dos cortiços da cidade e onde há intensa disputa por espaço. Sua requalificação não pode ser vista como simplesmente positiva ou neutra.
Nesse sentido, o "casarão Santos Dumont" expõe diretamente a tensão: um dos importantes núcleos de resistência dos movimentos por moradia foi "removido" para a instalação de um indecifrável Museu da Energia.
A opção por não implantar no Dops a Escola Superior de Música, reclamada pelo maestro Neschling e que já tinha um projeto pronto e aprovado, mais uma vez revela essa orientação.
Pois, por mais interessante que possa ser a proposta deste, que é mais um centro cultural, não pode ser comparada ao projeto formativo de uma escola, que inclusive se somaria à sala de concertos, dando maior sentido a ela.
No entanto, ao contrário, esta mantém-se isolada, como um centro de excelência em meio à barbárie. Aparências contrastantes com as quais a sociabilidade já se acostumou, mas que são as marcas de um projeto civilizatório que se realiza por processos renovados de violência urbana.


Avaliação:   

Guilherme Wisnik é arquiteto, autor de "Lucio Costa" (Cosac & Naify, 2001)



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