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CONTARDO CALLIGARIS
O que faz um casal?
Para existir, um par
precisa inventar e
compartilhar uma
longa aventura
AS HISTÓRIAS protagonizadas
por um casal (sejam elas literárias, cinematográficas, teatrais ou televisivas) podem ser divididas em duas categorias.
Há as histórias ditas "de amor", de
"Cinderela" a "Romeu e Julieta". Na
maioria dessas histórias, trata-se do
primeiro encontro dos amantes e
das dificuldades nas quais eles esbarram para se juntar. As coisas podem acabar mal ("Romeu e Julieta"), mas, quando acabam bem, a
narração termina na hora em que os
amantes começariam a "viver felizes
para sempre" ("Cinderela").
Ou seja, quando o amor deveria
ser o tema principal, o que é narrado
são os transtornos iniciais (com
mais ou menos meleca sentimental)
ou, às vezes, o trágico desfecho. A
prática cotidiana do amor é, em geral, apenas objeto de farsas e comédias: risível.
A segunda categoria é a das histórias em que um casal vive uma aventura que, aparentemente, não tem
nada a ver com seu amor: procuram
juntos desvendar um crime, assaltar
um banco, roubar um quadro, ganhar uma guerra ou encontrar o
Santo Graal.
Ao longo dessas façanhas, eles se
amam e têm ou não o tempo de se
beijar e de transar (nos filmes, esse
efeito colateral nos vale cinco minutos de rins, umbigos, pernas e lábios,
que não têm nada a ver com a ação e
permitem dar um pulo no saguão do
cinema para renovar a pipoca).
Ora, para mim, os verdadeiros filmes de amor são esses, os da segunda categoria, os filmes "de aventura". Por quê?
A maioria desses filmes parece
afastada de nossa experiência cotidiana. Com ou sem minha companheira, é raro que eu assalte bancos,
roube quadros ou solva enigmas policiais. Mas essas proezas valem como exemplos de um "fazer juntos",
que, na prática do amor, é um ideal
mais útil do que os meandros dos
primeiros encontros, propostos pelos "filmes de amor".
Ou seja, os filmes de amor me dizem que, do amor, vale a pena ser
narrado apenas o momento do apaixonamento (supõe-se, imagino, que,
depois disso, aos poucos, a coisa vire
uma lástima). Os filmes de aventura
me dizem que existe a possibilidade
de uma experiência comum, de uma
aventura dos dois (que, claro, não
precisa ser tão mirabolante quanto o
que acontece na tela).
Em suma, concordo com a citação
proverbial de Antoine de Saint-Exupéry (o autor de "O Pequeno Príncipe"): "Amar não significa se olhar
um ao outro, mas olhar juntos na
mesma direção" (se me lembro direito, a frase está em "Terra dos Homens", livro de memórias e reflexões que acaba de ser publicado em
português pela Nova Fronteira).
Fica a pergunta: o que é "olhar
juntos na mesma direção"? Na falta
de fortalezas para expugnar, fazer o
quê? A forma clássica de olhar juntos na mesma direção é criar filhos.
Isso não significa que um casal deva agüentar um inferno conjugal para que pai e mãe fiquem com seus rebentos até eles crescerem. Significa
apenas que a tarefa comum de criar
os filhos é uma prática possível do
amor. Já foi a mais comum, aliás.
Num artigo publicado no caderno
Mais!, da Folha de domingo passado, Gianni Vattimo nota que a reprodução sexual implica, de uma
maneira ou de outra, a vontade de
manter e reproduzir o mesmo. O
homem do antigo regime previa
que seus filhos teriam seu mesmo
status num mundo que se manteria igual; nós, homens modernos,
sonhamos que nossos filhos nos ultrapassem, mas dentro de um quadro que tendemos a reproduzir
(muitos desejam um filho médico,
mas poucos gostariam que esse
médico fosse Che Guevara).
Talvez por essa razão, criar filhos
deixe de ser, hoje, a experiência comum dominante na qual prospera
o amor de um casal. Há traços da
subjetividade moderna que exigem
dos casais outras escolhas: a sede
de renovação constante (reproduzir e se reproduzir não é mais suficiente para preencher nossa vida)
e, sobretudo, a vontade de capitalizar experiência por conta própria
(sonhar, por procuração, com a experiência futura dos filhos não nos
basta mais).
Essa é, portanto, a dificuldade:
fora criar filhos, o que é, hoje, para
um casal, "olhar na mesma direção"? Alguns praticam o amor lendo poesia em voz alta, outros estudam juntos, outros exercem a mesma profissão ou adotam ambos
uma nova religião, outros ainda se
dedicam a práticas sexuais "diferentes". Tanto faz. O que importa é
que, para existir, um casal precisa
inventar e compartilhar uma (longa) aventura.
@ - ccalligari uol.com.br
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