São Paulo, quarta-feira, 06 de julho de 2011

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MARCELO COELHO

Crinas, carecas e perucas


O careca é um indiferente. Sabe que seu charme com as mulheres não depende de cabelos encaracolados


ANTIGAMENTE, ELES não eram tantos. No cinema, apenas Yul Brynner (1920-1985) exibia, com voluntarismo quase obsceno, o brilho branco de uma careca que parecia combinar com a intensidade feroz, sensual e tártara dos seus olhos escuros.
De uma hora para outra, os carecas surgiram em toda parte. Compreendo o motivo. Homens relativamente moços, sem rugas, não se conformaram com o avanço das entradas na testa, com a devastação atômica no epicentro do cocuruto. Optaram, então, por raspar tudo. Por que disfarçar a calvície com meias perucas ou os penteados tipo "coberturas zetaflex, a solução para quem não tem garagem"?
Melhor radicalizar; esquecer o problema; desprezar o cabelo que, afinal de contas, já não se tem. Há um ganho de masculinidade nisso, não apenas porque o exemplo de Yul Brynner volta novamente à nossa cabeça (epa!).
Mas também porque, na cabeça nua, parecem desaparecer o medo às convenções, o cuidado com a própria aparência, o recurso ao disfarce. O careca é um indiferente. Sabe que seu charme com as mulheres não depende de cabelos encaracolados, de franjinhas, de penteados e ares adolescentes; seu charme está, na verdade, alhures.
Com certeza, todo o raciocínio não sobrevive a uma análise mais detida. O careca não está sendo mais natural e despojado ao abandonar seus últimos fios de cabelo.
Há que raspá-los periodicamente. Há ainda (suprema humilhação) que passar filtros solares na epiderme, infantilmente frágil, que receberá os raios perpendiculares do sol.
O desdém pelo rosto talvez comporte, ademais, uma ambiguidade. "Sou tão bonito e tão jovem que, mesmo com o cabelo raspado, não saio perdendo."
Passo por cima (mais um epa!) de outras contradições, como por exemplo o uso de uma boina preta de banda ou de um chapéu à la Humphrey Bogart (1899-1957), que a rigor não se concilia com a defesa sem concessões da nudez occipital.
Em seu recente livro de memórias, intitulado "A Lebre da Patagônia", o jornalista e cineasta Claude Lanzmann também implica com a moda do cabelo raspado.
O autor do clássico "Shoah", que é um dos convidados da Flip deste ano, faz elogios ao soldados do Exército israelense e aos pilotos ingleses da Segunda Guerra Mundial, pelo fato de usarem cabelos compridos. O corte militar, à escovinha, vá lá. Mas a carequice completa ele abomina.
"A soldadesca globalizada, profissionalizada, mercenarizada", diz Lanzmann, "raspa o crânio, traz a cabeça a zero para significar a força e a virilidade, a morte do medo e do sentimento, para se tornar assustadora".
Continua: "Cada um parece ser, assim, o clone do outro e a cabeça raspada a zero é sem dúvida o denominador mais comum dessa polícia internacional". Desumanização, vale lembrar, também imposta às vítimas dos nazistas nos campos de extermínio.
Dos mercenários, a moda passou a Bruce Willis e daí aos campos de futebol, onde parece convir menos ao simpático Ronaldo Fenômeno do que ao matador Zinedine Zidane, capaz, como se viu, de cabeçadas implacáveis.
Não foi o único sinal de uma militarização geral dos gostos e costumes. Carros imitaram jipes de combate, o velho mocassim foi abandonado em favor dos coturnos e das botas de expedicionário alpino, "overcoats" pesadíssimos, com alças nos ombros, revivem o cerco de Stalingrado e a polícia dos campos da Sibéria.
A moda, entretanto, aos poucos vai passando. Fico feliz, por exemplo, ao ver que os novos "sonhos de consumo" do motorista brasileiro são os minis, como o Smart, o Morris e o Cooper. Alguns modelos, pelo que sei, custam caríssimo.
Seu estilo, entretanto, é mais amigável e ecológico.
Não há necessidade de virar careca para se tornar bom jogador de futebol. Um dos benefícios trazidos por Neymar ao presente estado de coisas está no fato de inaugurar a moda, sempre flexível a muitas variações, comprimentos, cores e texturas, do penacho capilar.
Seria errado qualificar esse tipo de cabelo como "moicano" simplesmente. Seria ainda bélico demais se se resumisse a isso. É uma espécie de crina, de estandarte flamejante e livre, conciliando os parietais raspados da moda anterior com algo de potro, de tauromáquico, de aimoré. No quadro atual, já vale por um avanço civilizatório.
Espero que a moda pegue. Temo, naturalmente, que venha a dar início a uma indústria de implantes para quem tiver o couro cabeludo infértil. Mas aí será ocasião para outro artigo.

coelhofsp@uol.com.br

AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Contardo Calligaris


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