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São Paulo, quarta-feira, 06 de agosto de 2003

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ANÁLISE

"Falcão" e MV Bill frustram expectativas

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Eu e a torcida do Flamengo nos preparamos para ver "Falcão - Os Meninos do Tráfico", documentário produzido pela Globo com a Central Única das Favelas (Cufa), com a participação do rapper MV Bill e de seu empresário-produtor Celso Athayde, que seria mostrado no "Fantástico" do último domingo.
MV Bill e Athayde frustraram as expectativas da emissora e dos telespectadores, cancelando a exibição na última hora. Fica a curiosidade sobre os misteriosos motivos que nos privaram de ver o filme. Mas principalmente fica a vontade de apreciar o produto de uma parceria inédita e ousada.
Ficamos sem saber como funcionou a dinâmica de produção. Não pudemos ver se o resultado da empreitada se diferencia de filmes recentes denunciados como apropriação ilegítima de repertório. Quais as novidades de forma e conteúdo sugeridas em um trabalho produzido em parceria com os próprios moradores das favelas? Qual o significado desse controle inédito -e bem-vindo- sobre a produção de cultura?
Podemos especular sobre as razões que suspenderam a veiculação do documentário. Estariam em ação terríveis forças ocultas? Estaria em jogo o temor da repetição do destino de Marcinho VP? Teriam fantásticas esperanças de exibição cinematográfica, com direito a tapete vermelho na calçada da fama, seduzido nossos realizadores estreantes?
Ou nem uma coisa, nem outra, estaríamos diante de uma inexplicável, mas simples mudança de conduta, uma variação de humor, uma prepotência assustada diante do grau elevado, quase máximo, de visibilidade que o documentário traria?
Talvez não haja uma explicação persecutória. Provavelmente uma resposta convincente resulte de uma combinação de vontades, pressões, temores e idiossincrasias sintomática da instabilidade e da falta de confiança que nos ameaça.
O rap e outras manifestações escritas marcam uma apropriação da norma culta em universos anteriormente representados como um "outro", pobre, que poderia ser bom ou mau, mas sempre um outro. A safra recente de filmes que abordam esse universo de alguma forma incorpora expressões dessa cultura "autêntica".
O documentário tinha -ou quem sabe ainda tem- a chance de ir mais longe, trazendo um universo representado a partir "de dentro", para o meio de comunicação mais popular. Em uma situação saturada por enfrentamentos, redes heterodoxas como essa podem, quem sabe, estimular sinergias inspiradoras de novas sociabilidades.
Por essas e outras, não vi e não gostei (de não ter visto).


Esther Hamburger é antropóloga e professora da ECA-USP


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