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MARCELO COELHO
A aflição e o fascínio de Eric Rohmer
Não sou dos que, diante de
um filme detestável, ficam
até o fim para saber o que acontecerá com os personagens. Tenho
mais prazer em sair no meio, como uma espécie de vingança pessoal contra o diretor.
Confesso que já saí na metade
de um filme de Eric Rohmer
-não me lembro direito qual,
mas não era diferente dos outros:
a mesma falação interminável, a
câmera quase fixa, focada num
mundinho estreito da classe média francesa, com as indecisões
sentimentais de personagens medíocres dando uma sensação simultânea de vazio e de asfixia.
Estamos vivendo uma onda
Eric Rohmer em São Paulo. Há
três filmes dele em cartaz -"A
Inglesa e o Duque", "Conto de Verão" e "Conto de Outono"-,
além de "Conto de Inverno", que
teve pré-estréia no domingo passado.
"A Inglesa e o Duque" foge do
padrão do diretor. A história se
passa durante a Revolução Francesa, evento que aliás é tratado
com veemente antipatia. O populacho sedento de sangue, desdentado e bestial, deixa-se mobilizar
por fanáticos impiedosos, fazendo
com que a protagonista do filme
-uma inglesa fidalga, caridosa e
cheia de bravura- passe maus
bocados.
Decide-se a decapitação de Luís
16; nada mais desumano e horrível, pensa a inglesa. Ela própria é
submetida a atos revoltantes de
intimidação política e terrorismo
judiciário; os sequazes de Robespierre invadem sua casa toda semana, no que o filme sugere ser
uma rotina semelhante à dos nazistas contra os judeus.
Creio que faz pouco sentido criticar o filme pelo que tem de monarquista, pelo que silencia com
relação aos abusos do Antigo Regime etc. Não está em questão,
para o público contemporâneo,
apoiar ou condenar o absolutismo da casa de Bourbon, ao passo
que o Terror -de esquerda ou de
direita- continua a ser, infelizmente, assunto em pauta em
qualquer lugar do mundo.
De qualquer modo, o mais interessante de "A Inglesa e o Duque"
não está nas discussões políticas
que promove, mas sim naquilo
que tem em comum com os outros
filmes de Eric Rohmer: a falação,
as indecisões sentimentais dos
personagens, o vazio, a asfixia...
tudo de que eu reclamava no começo deste artigo.
Tento me explicar. O duque a
que se refere o título do filme é
primo de Luís 16; sua alta posição
no regime aristocrático não o impede, entretanto, de conspirar ao
lado dos revolucionários e, finalmente, de apoiar a execução do
rei. O duque de Orléans comete
uma traição total, sem dúvida, face aos códigos de honra da nobreza; ao mesmo tempo, foi coerente
com suas próprias convicções liberais e patrióticas. Ou será que
tudo não passava de sobrevivência política? Desejo de usurpar o
trono, talvez? Ingenuidade diante
da escalada do Terror? Não sabemos; é possível que nem o próprio
duque soubesse.
Também a inglesa é confrontada com decisões que é preciso tomar de qualquer jeito. O irônico é
que sua coragem também se revela inexplicável: arrisca-se em favor de quem não mereceria ser
ajudado, e o filme inteiro se constrói, na verdade, em lances de puro acaso.
Puro acaso é também o que
orienta os enredos de "Conto de
Verão" e "Conto de Inverno". São
bastante simétricos. Num filme,
um rapaz não sabe com qual de
três meninas vai ficar; no outro, é
uma mulher que se atrapalha
com três homens em sua vida.
Como em "A Inglesa e o Duque", tudo gira em torno de compromissos assumidos, de promessas que terão de ser desfeitas: incapazes de se decidir, os personagens buscam uma coerência quase que impossível entre o que querem, o que disseram, o que esperam e o que lhes reserva o destino.
Toda a verborragia dos filmes
de Rohmer parece ser motivada,
assim, pela necessidade que os
próprios personagens têm de
montar um discurso coerente,
apesar das oscilações do sentimento e das contingências imprevisíveis da vida. Isso produz um
efeito esquisito. Os personagens
analisam-se o tempo inteiro, discutem interminavelmente seus
afetos e disposições íntimas; mas,
de alguma forma, tudo isso se faz
a seco, sem drama, sem efusão
psicológica, numa espécie de oscilação mecânica, como se suas decisões imitassem uma porta de
vaivém.
Portas que se abrem e fecham, o
esconde-esconde das ante-salas e
das alcovas são coisas típicas da
comédia de boulevard do século
19. De fato, um clima de comédia,
mas sem comicidade nem sátira
nem caricatura -como se as piadas tivessem sido suprimidas-,
está presente nesses filmes.
E é a partir daí que a política e a
ideologia de Eric Rohmer talvez
ganhem uma outra dimensão.
Em seus filmes, a idéia da liberdade individual, vitoriosa em 1789,
parece não ter mais protagonistas
à altura.
Na pequena classe média caseira, comodista e consumidora dos
dias de hoje, dilemas de consultório sentimental ocupam o vazio
deixado pelos antigos e grandiosos projetos de emancipação humana. Esses dilemas não têm como ser resolvidos, nem pela nossa
vontade nem pela vontade de um
Deus que tampouco existe. Só o
acaso, e a intuição que pudermos
ter a seu respeito, decidirá da felicidade de cada um. E só a felicidade de "cada um", não a de todos, é o que interessa.
Difícil saber o quanto há de crítico, ou de abertamente conformista, nessa avaliação; mas creio
que isso acaba tornando os filmes
de Rohmer fascinantes de ver.
Desde que superemos a aflição
que, de propósito, provocam.
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