UOL


São Paulo, quarta-feira, 06 de agosto de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARCELO COELHO

A aflição e o fascínio de Eric Rohmer

Não sou dos que, diante de um filme detestável, ficam até o fim para saber o que acontecerá com os personagens. Tenho mais prazer em sair no meio, como uma espécie de vingança pessoal contra o diretor.
Confesso que já saí na metade de um filme de Eric Rohmer -não me lembro direito qual, mas não era diferente dos outros: a mesma falação interminável, a câmera quase fixa, focada num mundinho estreito da classe média francesa, com as indecisões sentimentais de personagens medíocres dando uma sensação simultânea de vazio e de asfixia.
Estamos vivendo uma onda Eric Rohmer em São Paulo. Há três filmes dele em cartaz -"A Inglesa e o Duque", "Conto de Verão" e "Conto de Outono"-, além de "Conto de Inverno", que teve pré-estréia no domingo passado.
"A Inglesa e o Duque" foge do padrão do diretor. A história se passa durante a Revolução Francesa, evento que aliás é tratado com veemente antipatia. O populacho sedento de sangue, desdentado e bestial, deixa-se mobilizar por fanáticos impiedosos, fazendo com que a protagonista do filme -uma inglesa fidalga, caridosa e cheia de bravura- passe maus bocados.
Decide-se a decapitação de Luís 16; nada mais desumano e horrível, pensa a inglesa. Ela própria é submetida a atos revoltantes de intimidação política e terrorismo judiciário; os sequazes de Robespierre invadem sua casa toda semana, no que o filme sugere ser uma rotina semelhante à dos nazistas contra os judeus.
Creio que faz pouco sentido criticar o filme pelo que tem de monarquista, pelo que silencia com relação aos abusos do Antigo Regime etc. Não está em questão, para o público contemporâneo, apoiar ou condenar o absolutismo da casa de Bourbon, ao passo que o Terror -de esquerda ou de direita- continua a ser, infelizmente, assunto em pauta em qualquer lugar do mundo.
De qualquer modo, o mais interessante de "A Inglesa e o Duque" não está nas discussões políticas que promove, mas sim naquilo que tem em comum com os outros filmes de Eric Rohmer: a falação, as indecisões sentimentais dos personagens, o vazio, a asfixia... tudo de que eu reclamava no começo deste artigo.
Tento me explicar. O duque a que se refere o título do filme é primo de Luís 16; sua alta posição no regime aristocrático não o impede, entretanto, de conspirar ao lado dos revolucionários e, finalmente, de apoiar a execução do rei. O duque de Orléans comete uma traição total, sem dúvida, face aos códigos de honra da nobreza; ao mesmo tempo, foi coerente com suas próprias convicções liberais e patrióticas. Ou será que tudo não passava de sobrevivência política? Desejo de usurpar o trono, talvez? Ingenuidade diante da escalada do Terror? Não sabemos; é possível que nem o próprio duque soubesse.
Também a inglesa é confrontada com decisões que é preciso tomar de qualquer jeito. O irônico é que sua coragem também se revela inexplicável: arrisca-se em favor de quem não mereceria ser ajudado, e o filme inteiro se constrói, na verdade, em lances de puro acaso.
Puro acaso é também o que orienta os enredos de "Conto de Verão" e "Conto de Inverno". São bastante simétricos. Num filme, um rapaz não sabe com qual de três meninas vai ficar; no outro, é uma mulher que se atrapalha com três homens em sua vida.
Como em "A Inglesa e o Duque", tudo gira em torno de compromissos assumidos, de promessas que terão de ser desfeitas: incapazes de se decidir, os personagens buscam uma coerência quase que impossível entre o que querem, o que disseram, o que esperam e o que lhes reserva o destino.
Toda a verborragia dos filmes de Rohmer parece ser motivada, assim, pela necessidade que os próprios personagens têm de montar um discurso coerente, apesar das oscilações do sentimento e das contingências imprevisíveis da vida. Isso produz um efeito esquisito. Os personagens analisam-se o tempo inteiro, discutem interminavelmente seus afetos e disposições íntimas; mas, de alguma forma, tudo isso se faz a seco, sem drama, sem efusão psicológica, numa espécie de oscilação mecânica, como se suas decisões imitassem uma porta de vaivém.
Portas que se abrem e fecham, o esconde-esconde das ante-salas e das alcovas são coisas típicas da comédia de boulevard do século 19. De fato, um clima de comédia, mas sem comicidade nem sátira nem caricatura -como se as piadas tivessem sido suprimidas-, está presente nesses filmes.
E é a partir daí que a política e a ideologia de Eric Rohmer talvez ganhem uma outra dimensão. Em seus filmes, a idéia da liberdade individual, vitoriosa em 1789, parece não ter mais protagonistas à altura.
Na pequena classe média caseira, comodista e consumidora dos dias de hoje, dilemas de consultório sentimental ocupam o vazio deixado pelos antigos e grandiosos projetos de emancipação humana. Esses dilemas não têm como ser resolvidos, nem pela nossa vontade nem pela vontade de um Deus que tampouco existe. Só o acaso, e a intuição que pudermos ter a seu respeito, decidirá da felicidade de cada um. E só a felicidade de "cada um", não a de todos, é o que interessa.
Difícil saber o quanto há de crítico, ou de abertamente conformista, nessa avaliação; mas creio que isso acaba tornando os filmes de Rohmer fascinantes de ver. Desde que superemos a aflição que, de propósito, provocam.


Texto Anterior: Análise: "Falcão" e MV Bill frustram expectativas
Próximo Texto: Dança: Desejos incorporam nova obra do Corpo
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.