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Brasil arcaico estranha TV moderna
No cotidiano retratado nas novelas, há espaço para casais gays, striptease e discussões sobre masturbação feminina
Para especialistas ouvidos pela Folha, há uma distância cultural entre aqueles que produzem novelas e aqueles que as assistem diariamente
ANTÔNIO GOIS
CRISTINA TARDÁGUILA
DA SUCURSAL DO RIO
A vida que passa nas novelas
da Globo é mais moderna do
que a real. Em muitos aspectos,
o cotidiano retratado na televisão se mostra mais avançado
em relação a alguns temas tabus do que a média da população brasileira.
No mundo real, pesquisas de
opinião mostram uma rejeição
alta da população brasileira, especialmente masculina, aos homossexuais. No mundo das novelas, várias produções nos últimos dez anos abordaram,
com maior ou menor abertura,
o tema. Quase sempre, os personagens gays terminavam
bem aceitos e com um final feliz, ainda que, para não chocar a
audiência, as demonstrações
de afeto nunca ultrapassassem
a barreira do beijo.
A atual novela das oito, "Páginas da Vida", não fugiu à regra
das polêmicas recentes. O primeiro protesto de parte dos telespectadores surgiu logo na
semana inicial, quando a personagem interpretada por Ana
Paula Arósio apareceu nua numa cena de striptease. Dias depois, a novela voltaria a ser comentada por causa do depoimento de uma mulher de 68
anos sobre masturbação.
Para especialistas ouvidos
pela Folha, há uma distância
cultural entre aqueles que produzem novela e os que as assistem. No entanto, como esse é
um produto de massa, eles
apontam que há sempre um limite até o qual se pode ir.
A vice-coordenadora do núcleo de telenovelas da USP e
professora da Escola de Comunicação e Artes (ECA), Maria
Lourdes Motter, diz que essa
diferença sempre existiu e deve
continuar existindo, mas que é
preciso achar o ponto de equilíbrio: "É preciso sempre produzir algo novo, mas mantendo
uma parte conhecida para que
você não afugente as pessoas
pela falta de compreensão. A
indústria cultural prevê a existência de um pêndulo entre a
conservação e a mudança. Os
artistas têm que conservar e
inovar ao mesmo tempo".
Final feliz
O cientista político Alberto
Almeida, autor de uma pesquisa de opinião que comparou vários hábitos e comportamentos
do brasileiro por nível de escolaridade, diz que as polêmicas
recentes em novelas são um reflexo do que ele chamou, em
sua pesquisa, de choque entre o
Brasil arcaico e o moderno. Ele
concorda, no entanto, que a novela acaba conciliando, no final,
o interesse de todos.
"O final das novelas sempre
reflete uma visão conservadora
de felicidade, com casamentos
e uniões, o que em geral é uma
preferência bem sedimentada
da classe baixa. Se o final refletisse a elite escolarizada do Rio
e de São Paulo, teria separações
e pessoas refazendo suas vidas.
Assim, em alguma medida, a
novela concilia os dois conjuntos de valores. Mas certamente
a classe baixa não é atendida
quando se trata de moralidade
sexual", diz Almeida.
Para o dramaturgo Rubens
Rewald, que integra o Nudrama
(Núcleo de Pesquisa em Dramaturgia Audiovisual da USP),
é muito difícil dizer até que
ponto a novela reflete a realidade ou indica novos caminhos
para ela: "Uma obra é sempre
fruto de um meio, de uma época. E, por mais ficção que seja,
reflete uma questão aparente
ou sublimada na sociedade. As
obras de arte, e dentro delas as
novelas, sempre dialogam com
seu tempo".
Rewald diz que o que se vê
nas novelas são espelhos da sociedade urbana, mas destaca
que, mais do que indicar modelos de comportamento, elas
acabam gerando discussões sobre esses modelos.
Para o dramaturgo, no entanto, o público de novela no Brasil
ainda é muito conservador e faz
com que a televisão seja conservadora também.
Intenção
Na opinião da demógrafa
Paula Miranda Ribeiro, do Cedeplar (Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional), da UFMG, a Rede Globo
tem consciência do papel indutor que as novelas podem ter
em relação a alguns temas. Isso
fica claro, segundo ela, quando
a novela faz merchandising social e inclui, muitas vezes a pedido da rede, temas como dependência química, leucemia
ou deficiência nas tramas de
novela.
Ribeiro diz não acreditar, no
entanto, que as polêmicas relacionadas a sexualidade apareçam por causa de uma orientação da emissora. Para ela, trata-se muito mais de uma iniciativa
dos autores.
O escritor Gilberto Braga
confirma a tese. "Nunca tive
notícia de que a emissora pedisse para incluir personagens
gays, por exemplo. Quem propõe é o autor, às vezes com o
objetivo de contribuir para a
discussão sobre preconceito,
salvo em algumas novelas em
que esses personagens eram
mostrados para fazer graça",
diz o autor.
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