São Paulo, domingo, 06 de agosto de 2006

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Brasil arcaico estranha TV moderna

No cotidiano retratado nas novelas, há espaço para casais gays, striptease e discussões sobre masturbação feminina

Para especialistas ouvidos pela Folha, há uma distância cultural entre aqueles que produzem novelas e aqueles que as assistem diariamente

ANTÔNIO GOIS
CRISTINA TARDÁGUILA

DA SUCURSAL DO RIO

A vida que passa nas novelas da Globo é mais moderna do que a real. Em muitos aspectos, o cotidiano retratado na televisão se mostra mais avançado em relação a alguns temas tabus do que a média da população brasileira.
No mundo real, pesquisas de opinião mostram uma rejeição alta da população brasileira, especialmente masculina, aos homossexuais. No mundo das novelas, várias produções nos últimos dez anos abordaram, com maior ou menor abertura, o tema. Quase sempre, os personagens gays terminavam bem aceitos e com um final feliz, ainda que, para não chocar a audiência, as demonstrações de afeto nunca ultrapassassem a barreira do beijo.
A atual novela das oito, "Páginas da Vida", não fugiu à regra das polêmicas recentes. O primeiro protesto de parte dos telespectadores surgiu logo na semana inicial, quando a personagem interpretada por Ana Paula Arósio apareceu nua numa cena de striptease. Dias depois, a novela voltaria a ser comentada por causa do depoimento de uma mulher de 68 anos sobre masturbação.
Para especialistas ouvidos pela Folha, há uma distância cultural entre aqueles que produzem novela e os que as assistem. No entanto, como esse é um produto de massa, eles apontam que há sempre um limite até o qual se pode ir.
A vice-coordenadora do núcleo de telenovelas da USP e professora da Escola de Comunicação e Artes (ECA), Maria Lourdes Motter, diz que essa diferença sempre existiu e deve continuar existindo, mas que é preciso achar o ponto de equilíbrio: "É preciso sempre produzir algo novo, mas mantendo uma parte conhecida para que você não afugente as pessoas pela falta de compreensão. A indústria cultural prevê a existência de um pêndulo entre a conservação e a mudança. Os artistas têm que conservar e inovar ao mesmo tempo".

Final feliz
O cientista político Alberto Almeida, autor de uma pesquisa de opinião que comparou vários hábitos e comportamentos do brasileiro por nível de escolaridade, diz que as polêmicas recentes em novelas são um reflexo do que ele chamou, em sua pesquisa, de choque entre o Brasil arcaico e o moderno. Ele concorda, no entanto, que a novela acaba conciliando, no final, o interesse de todos.
"O final das novelas sempre reflete uma visão conservadora de felicidade, com casamentos e uniões, o que em geral é uma preferência bem sedimentada da classe baixa. Se o final refletisse a elite escolarizada do Rio e de São Paulo, teria separações e pessoas refazendo suas vidas. Assim, em alguma medida, a novela concilia os dois conjuntos de valores. Mas certamente a classe baixa não é atendida quando se trata de moralidade sexual", diz Almeida.
Para o dramaturgo Rubens Rewald, que integra o Nudrama (Núcleo de Pesquisa em Dramaturgia Audiovisual da USP), é muito difícil dizer até que ponto a novela reflete a realidade ou indica novos caminhos para ela: "Uma obra é sempre fruto de um meio, de uma época. E, por mais ficção que seja, reflete uma questão aparente ou sublimada na sociedade. As obras de arte, e dentro delas as novelas, sempre dialogam com seu tempo".
Rewald diz que o que se vê nas novelas são espelhos da sociedade urbana, mas destaca que, mais do que indicar modelos de comportamento, elas acabam gerando discussões sobre esses modelos.
Para o dramaturgo, no entanto, o público de novela no Brasil ainda é muito conservador e faz com que a televisão seja conservadora também.

Intenção
Na opinião da demógrafa Paula Miranda Ribeiro, do Cedeplar (Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional), da UFMG, a Rede Globo tem consciência do papel indutor que as novelas podem ter em relação a alguns temas. Isso fica claro, segundo ela, quando a novela faz merchandising social e inclui, muitas vezes a pedido da rede, temas como dependência química, leucemia ou deficiência nas tramas de novela.
Ribeiro diz não acreditar, no entanto, que as polêmicas relacionadas a sexualidade apareçam por causa de uma orientação da emissora. Para ela, trata-se muito mais de uma iniciativa dos autores.
O escritor Gilberto Braga confirma a tese. "Nunca tive notícia de que a emissora pedisse para incluir personagens gays, por exemplo. Quem propõe é o autor, às vezes com o objetivo de contribuir para a discussão sobre preconceito, salvo em algumas novelas em que esses personagens eram mostrados para fazer graça", diz o autor.


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