São Paulo, quinta, 6 de agosto de 1998

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Que mistério tem a palavra cantada?

EDUARDO GIANNETTI

Colunista da Folha


"Dai-me a castidade e a continência", orava o jovem Agostinho, "mas não ma deis já". A memória insurreta de prazeres vividos não se rende com facilidade aos ditames do córtex superior. O futuro santo católico almejava o bem, mas sabia de perto o que era bom. Sua relação torturada e ambígua com a música -"os prazeres do ouvido"- ilustra o dilema que enfrentava.
A vontade consciente de Agostinho era manter o canto religioso no seu devido lugar -como um instrumento acessório, sempre a serviço da fé e do culto divino. O que o alarmava, porém, era constatar que volta e meia a gratificação dos sentidos subjugava e vencia o sentimento de devoção.
Ao ouvir os hinos e cânticos da igreja entoados com suavidade e arte, Agostinho se pilhava em meio a escapadas furtivas dos sentidos. Ele se rendia ao puro prazer sensual da audição e assim acabava perdendo inteiramente de vista o sentido religioso dos salmos.
O poder de sedução da melodia e do canto impregnava sutilmente a sua alma. Quando ele se dava conta, era tarde: lá estava absorto, nas asas de deleites inconfessáveis, involuntariamente entregue às delícias profanas de seu passado libertino. Longe do bem, no colo do bom.
"Sinto que todos os afetos de minha alma encontram na voz e no canto as suas próprias modulações, vibrando em razão de um parentesco oculto, para mim desconhecido, que existe entre eles... Mas quando o cantar em si me sensibiliza mais do que a verdade das palavras que se cantam, confesso com dor que pequei." ("Confissões", X, 33).
A pontaria do santo, como de costume, é certeira. O fantasma de um suposto "pecado da lascívia musical" não precisa nos ocupar. Trata-se de uma aberração platônica-cristã que a deliciosa tirada de William Blake fulmina com o devido bom humor: "Assim como a lagarta seleciona as melhores folhas para depositar seus ovos, o padre deposita suas pragas sobre os melhores prazeres".
Ascetismo à parte, contudo, creio que a confissão de Agostinho nos diz algo importante sobre os prazeres do ouvido. O que é feito da melodia e do canto -vibrações sonoras que se propagam no ar- na vivência interna de quem ouve e se encanta? A experiência agostiniana com a música sacra ajuda a identificar os elementos básicos do prazer de ouvir.
Existe um ouvir consciente, possivelmente associado ao lado esquerdo do cérebro, que acompanha o sentido das palavras cantadas e que busca seguir o fio melódico da canção. Prevalece aqui a dimensão semântica do canto e a intenção de entender a música de olhos abertos, sem perder as rédeas da atenção. É um ouvir voluntário e concentrado no qual predominam a disposição alerta e o foco intelectivo.
Existe, porém, uma outra forma de apreensão do canto que corre paralela ao ouvir consciente e que muitas vezes acaba nos envolvendo e dominando por completo. Trata-se de um ouvir da entrega -um ouvir secreto da sensibilidade em estado puro que fala diretamente ao coração e que parece ter o dom de operar de forma quase subliminar sobre o nosso sistema nervoso.
O que prevalece nesse ouvir sensual, não mediado pelas faculdades intelectivas, é a força subterrânea e sedutora dos ritmos, das cadências, das inflexões e entonações sutis, da modulação e do timbre vocal, em suma, de tudo aquilo que nos franqueia o acesso a emoções e afetos adormecidos no recesso da alma e que levava o devoto Agostinho ao desespero.
O prazer do canto melódico, acredito, tem muito a ver com o modo específico pelo qual o ouvir consciente (semântico) e o ouvir da entrega (sensual) se combinam em nossa experiência mental-auditiva.
Generalizar é impossível. A vivência subjetiva da música é algo tão irredutivelmente pessoal e intransferível quanto um sonho ao ser sonhado. Só o que me resta é tentar ilustrar, sem qualquer pretensão maior de objetividade, a natureza desse processo a partir de minha própria experiência como ouvinte e fã confesso da música brasileira.
Num polo estão os criadores-intérpretes que se dirigem predominantemente às faculdades intelectivas. São os ídolos, por assim dizer, do lado esquerdo do cérebro. As composições mais belas e inspiradas de Chico Buarque cantadas por ele mesmo são talvez o melhor exemplo de canções que me encantam desse modo, ou seja, pelos caminhos do ouvir consciente.
No outro polo estão aqueles que me pegam claramente pelo ouvir da entrega. São vozes e sons que parecem ter o dom de render o lado direito do meu cérebro, encharcando a mente de estranhas e indefiníveis delícias. Exemplo nítido desse tipo de experiência no meu caso é o que acontece quando ouço e me deixo levar pelo canto mágico e estranhamente sedutor de Luiz Melodia.
Mas o ponto mais alto do prazer de ouvir é quando aparece alguém capaz de juntar as duas pontas. Alguém capaz de atacar, cercar e render simultaneamente, com o seu canto e sonoridade, a inteligência alerta do ouvir consciente e a imaginação sonhadora do ouvir da entrega.
Quando isso acontece, dá-se a rara alquimia de alguma coisa mais plena e sublime: o cantar em si e a expressividade total do som me sensibilizam de uma forma tão completa e intensa quanto a trilha melódica e o sentido poético da palavra cantada.
Nomes? O mais sensato, talvez, fosse falar não em nomes, mas em momentos de iluminação. Não vou me eximir, porém, de nomear aqueles que, para mim, melhor ilustram o mistério e a fronteira de possibilidades da palavra cantada em nossa língua.
Ciente de que cada brasileiro amante da música cultiva e defende a sua constelação íntima de ídolos máximos, eis os santos de minha devoção: João Gilberto, Caetano Veloso e Marina Lima.
O amor pela música, como qualquer forma de amor, jamais poderá ser racionalmente explicado. Talvez chegue o dia em que os avanços da neurociência nos mostrem tintim por tintim por que certas vozes e sons específicos fazem o que fazem com o cérebro de cada um. O absurdo é supor que esse tipo de saber objetivo e externo dará conta da vivência subjetiva e pessoal de quem ouve e se encanta.
Quanto a mim, uma coisa é certa: ouvindo o recém-lançado "Pierrot do Brasil" de Marina tenho a sorte e a felicidade de me sentir como se eu fosse uma espécie de Agostinho pecador e desprovido de culpa.



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