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Documentário denuncia virtudes e aberrações do século 20
MARCELO RUBENS PAIVA
especial para a Folha
Se alguém me pedisse uma frase
que resumisse o século 20, agora
que ele chega ao fim, eu diria que
foram os anos em que os homens
do bem, cansados de tanta estupidez, procuraram controlar a morbidez dos homens do mal.
Se me pedissem um exemplo
audiovisual desta saga, eu enviaria uma cópia de "Nós Que Aqui
Estamos por Vós Esperamos",
documentário produzido e dirigido por Marcelo Masagão, que estréia hoje, em São Paulo.
O filme é uma colagem de fotos
e documentários que procuram
explicar, ou melhor, resumir o século marcado pela banalização da
violência humana. Sobre as imagens, créditos que nomeiam personagens, brincam com eles, acusam, lembram frases, sugerem
pensamentos.
Na tela, a imagem de um aventureiro do começo do século (que
o cineasta chamou de "alfaiate",
por estar enrolado em panos), na
Torre Eiffel, que se lança ao espaço. Seu pára-quedas (os tais panos) não abre. Ele se esborracha.
A imagem se funde com a do
ônibus espacial que explode no
céu. Se Deus é o pai, dizem os créditos do filme, "Freud é a mãe". E
ele bem que avisou: o homem tem
limitações sérias, nem todas as
barreiras são transponíveis.
Neste século bem animado, o
homem "matou Deus" (Nietzsche) e expandiu suas pretensões,
chegando à Lua. Mas passou por
momentos que envergonhariam
as maiores bestas. O documentário fabrica nomes para personagens anônimos que fizeram e fazem a história. Acompanha a vida
de pequenos homens e mulheres.
Mescla imagens de túmulos de
um pequeno cemitério brasileiro,
como se fossem os túmulos dos
personagens do filme. Ao final,
sobre o portal de entrada do cemitério, a frase comum em muitos cemitérios do interior do Brasil: "Nós Que Aqui Estamos por
Vós Esperamos".
O filme brinca com a realidade,
nomeia soldados, conta epopéias.
Como a da família Jones. O bisavô
morreu na trincheira da Primeira
Guerra. O avô morreu num desembarque da Segunda Guerra. O
pai morreu no Vietnã e o filho foi
piloto de um caça que jogou bombas inteligentes sobre o Iraque.
Na ponta da faca, o homem custou a acreditar que era capaz de
criar cenários como as trincheiras
da Primeira Guerra, a guerra química, o holocausto da Segunda
Guerra, o bombardeio atômico
sobre o Japão e o Muro de Berlim.
De brinde, os corpos despedaçados da Guerra do Vietnã e os corpos amontoados de Serra Pelada.
Acabou criando forças que controlassem tamanha selvageria.
Tudo indica que tais forças se juntaram quando se percebeu que o
homem tinha potencial para destruir sua civilização. E, seguindo o
mais elementar ditame darwinista, criou-se a paz.
O homem solitário que barrou a
fila de tanques na repressão ao
movimento de estudantes da praça Celestial, em Pequim, certamente a cena mais marcante do
século, ganhou uma profissão: é
um professor de letras.
Elas, as mulheres, são homenageadas: inventam danças, provocam os costumes, reduzindo o
comprimento de saias ou queimando sutiãs. Dançam arrojadamente, como Josephine Baker.
Aliás, é o bailarino russo Vaslav
Nijinski que abre o filme. Porque
tantos fotogramas bailam e emocionam como um dançarino.
Masagão fez quase tudo sozinho, em uma salinha em sua casa,
na Granja Vianna, em São Paulo.
Usou um computador para montar o filme. Comprou fotos e fotogramas pela Internet. Quase sem
dinheiro, numa produção literalmente caseira, produziu um documentário que emociona, faz
pensar e denuncia as aberrações
do século em que viveram Hitler,
Stalin, Mao e, ao mesmo tempo,
Gandhi, Guevara e John Lennon.
O cineasta corre o risco de ser
incompreendido, por nomear o
que é anônimo ou inventar o que
é fato, misturando história e ficção. Mas dane-se. Depois de tanto
sufoco, merecemos esse filme.
Avaliação:
Filme: Nós Que Aqui Estamos por Vós
Esperamos
Produção: Brasil, 1999
Direção: Marcelo Masagão
Quando: a partir de hoje, no Espaço
Unibanco 1
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