São Paulo, Sexta-feira, 06 de Agosto de 1999
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Documentário denuncia virtudes e aberrações do século 20

MARCELO RUBENS PAIVA
especial para a Folha

Se alguém me pedisse uma frase que resumisse o século 20, agora que ele chega ao fim, eu diria que foram os anos em que os homens do bem, cansados de tanta estupidez, procuraram controlar a morbidez dos homens do mal.
Se me pedissem um exemplo audiovisual desta saga, eu enviaria uma cópia de "Nós Que Aqui Estamos por Vós Esperamos", documentário produzido e dirigido por Marcelo Masagão, que estréia hoje, em São Paulo.
O filme é uma colagem de fotos e documentários que procuram explicar, ou melhor, resumir o século marcado pela banalização da violência humana. Sobre as imagens, créditos que nomeiam personagens, brincam com eles, acusam, lembram frases, sugerem pensamentos.
Na tela, a imagem de um aventureiro do começo do século (que o cineasta chamou de "alfaiate", por estar enrolado em panos), na Torre Eiffel, que se lança ao espaço. Seu pára-quedas (os tais panos) não abre. Ele se esborracha.
A imagem se funde com a do ônibus espacial que explode no céu. Se Deus é o pai, dizem os créditos do filme, "Freud é a mãe". E ele bem que avisou: o homem tem limitações sérias, nem todas as barreiras são transponíveis.
Neste século bem animado, o homem "matou Deus" (Nietzsche) e expandiu suas pretensões, chegando à Lua. Mas passou por momentos que envergonhariam as maiores bestas. O documentário fabrica nomes para personagens anônimos que fizeram e fazem a história. Acompanha a vida de pequenos homens e mulheres.
Mescla imagens de túmulos de um pequeno cemitério brasileiro, como se fossem os túmulos dos personagens do filme. Ao final, sobre o portal de entrada do cemitério, a frase comum em muitos cemitérios do interior do Brasil: "Nós Que Aqui Estamos por Vós Esperamos".
O filme brinca com a realidade, nomeia soldados, conta epopéias. Como a da família Jones. O bisavô morreu na trincheira da Primeira Guerra. O avô morreu num desembarque da Segunda Guerra. O pai morreu no Vietnã e o filho foi piloto de um caça que jogou bombas inteligentes sobre o Iraque.
Na ponta da faca, o homem custou a acreditar que era capaz de criar cenários como as trincheiras da Primeira Guerra, a guerra química, o holocausto da Segunda Guerra, o bombardeio atômico sobre o Japão e o Muro de Berlim. De brinde, os corpos despedaçados da Guerra do Vietnã e os corpos amontoados de Serra Pelada.
Acabou criando forças que controlassem tamanha selvageria. Tudo indica que tais forças se juntaram quando se percebeu que o homem tinha potencial para destruir sua civilização. E, seguindo o mais elementar ditame darwinista, criou-se a paz.
O homem solitário que barrou a fila de tanques na repressão ao movimento de estudantes da praça Celestial, em Pequim, certamente a cena mais marcante do século, ganhou uma profissão: é um professor de letras.
Elas, as mulheres, são homenageadas: inventam danças, provocam os costumes, reduzindo o comprimento de saias ou queimando sutiãs. Dançam arrojadamente, como Josephine Baker. Aliás, é o bailarino russo Vaslav Nijinski que abre o filme. Porque tantos fotogramas bailam e emocionam como um dançarino.
Masagão fez quase tudo sozinho, em uma salinha em sua casa, na Granja Vianna, em São Paulo. Usou um computador para montar o filme. Comprou fotos e fotogramas pela Internet. Quase sem dinheiro, numa produção literalmente caseira, produziu um documentário que emociona, faz pensar e denuncia as aberrações do século em que viveram Hitler, Stalin, Mao e, ao mesmo tempo, Gandhi, Guevara e John Lennon.
O cineasta corre o risco de ser incompreendido, por nomear o que é anônimo ou inventar o que é fato, misturando história e ficção. Mas dane-se. Depois de tanto sufoco, merecemos esse filme.


Avaliação:     


Filme: Nós Que Aqui Estamos por Vós Esperamos Produção: Brasil, 1999 Direção: Marcelo Masagão Quando: a partir de hoje, no Espaço Unibanco 1


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