São Paulo, quinta-feira, 06 de setembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CINEMA

Ismail Kadaré e Walter Salles encontram semelhanças entre a realidade balcânica e a do Nordeste brasileiro atual

Autores relacionam Bálcãs com o sertão

DE PARIS

Um mundo separa a Albânia do Brasil. Durante pesquisas sobre lutas de sangue no Nordeste para o filme "Abril Despedaçado", o diretor Walter Salles encontrou no entanto coincidências intrigantes entre o universo dos Bálcãs e o sertão brasileiro. É sobre isso que ele e o escritor Ismail Kadaré conversam a seguir. Eles falam também a respeito das origens da tragédia e da relação entre literatura e cinema. (ALCINO LEITE NETO)

Ismail Kadaré - Sobre livros e filmes, eu faria uma comparação um pouco vulgar: o que existe são relações de força. Ou seja, há alguém que ganha e alguém que perde, alguém que domina e outro que se submete, como no amor. Não se pode fazer jamais um grande filme de "Os Irmãos Karamazov", mas há outros livros que às vezes resultam em coisa melhor quando adaptados para o cinema. No que concerne à criação, é importante manter uma distância, um afastamento. O criador é como o primeiro escritor, um viajante que vinha de longe. Ele aproveita que esteve num país onde ninguém foi e conta não importa o quê, com a maior liberdade. Assim começou a literatura.

Walter Salles - É muito interessante o que você diz, porque, para mim, o cinema é ligado à descoberta de uma geografia física e humana que me era estranha no início. É uma forma de reconhecimento e conhecimento do mundo. Borges dizia que o que lhe interessava na literatura era a possibilidade de nomear o que ainda não fora nomeado. De uma certa maneira, penso que o cineasta é atraído por esse mesmo espírito.

Kadaré - Dizer as coisas não ditas faz parte da essência da criação, não apenas da literatura, mas de todas as outras artes. Isso tudo começou com uma grande criação da humanidade, que foi a "casa inferno", inventada pelos egípcios. Antes, nossa vida era um imóvel bastante pobre, uma coisa quase estéril, e essa construção a enriqueceu muito. Os egípcios imaginaram uma outra vida, um além. A vida é desse tamanho? Então vamos ajuntar um rabo interminável. Foi uma revolução para o espírito humano. Toda a tragédia grega, toda a literatura antiga era baseada nessa realidade não real.

Salles - Nietzsche dizia que a tragédia era uma derivação das festas dionisíacas. No seu "Diálogo com Alain Bosquet" e também em "Ésquilo ou o Grande Perdedor", você diz no entanto que a tragédia tem uma origem diferente, ou seja, nos cantos fúnebres das rezadeiras. Diz também que a cena mortuária talvez tenha sido a primeira cena de tragédia do teatro. Poderia falar sobre isso?

Kadaré - Quando propus essa outra teoria, tive medo que todos saltassem sobre mim, dizendo: "Mas que megalômano! Há 2.000 anos que todo o mundo diz que a fonte da tragédia são as festas dionisíacas". Estou convencido, contudo, de que a tragédia se origina muito mais dos cantos fúnebres. As rezadeiras profissionais são as primeiras atrizes do mundo. A cena em torno do morto é a primeira do teatro, e o morto é o primeiro ator-personagem.

Salles - Por coincidência, nos lugares em que filmamos no Nordeste brasileiro, encontramos rezadeiras profissionais, que pouco a pouco integramos no filme. Participando da cena de velar o morto -no caso, um ator-, elas esqueciam que estavam num espaço artificial. O mais fascinante era que comentavam de maneira espontânea a vida do homem que no filme fora assassinado violentamente, através de cantos relacionados ao tema da morte violenta. Recontavam sua vida através das "excelências", cantos mortuários locais, texto de certo modo pré-escrito. Esse estado de coisas nos surpreendeu, pois fazia eco ao seu livro, mas também à tese colocada em "Ésquilo".

Kadaré - Esse fenômeno das rezadeiras no Brasil está ligado à imigração européia ou às próprias pessoas de lá?

Salles - Penso que é ligado à tradição ibérica, portanto à imigração encontrada em grande parte do Brasil, sobretudo no Nordeste.

Kadaré - É muito interessante, porque hoje se imagina que isso tenha a ver com povos primitivos, o que não é verdade. Está ligado ao fundamento da cultura ocidental. É o começo da grande cultura moderna. Quando você diz ibérica, trata-se de toda a tradição antiga, que passou pela Grécia e pela cultura latino-romana até chegar à Península Ibérica, que aliás tem muito mais similitudes com os Bálcãs do que tem a Itália.

Salles - Nas pesquisas que fizemos sobre as lutas de sangue no Brasil, estranhamente encontramos outras similitudes. Um exemplo: a mãe de uma família em luta contra outra família expunha no exterior da casa a camisa ensanguentada do filho que havia sido morto. Era uma maneira de lembrar que seu sangue deveria ser cobrado. Lendo "Ésquilo" e o seu "Diálogo com Alain Bosquet", percebi que, em "Oréstia", o dramaturgo grego utiliza a mesma camisa ensanguentada para que se lembre de uma morte violenta, imagem também presente na tradição albanesa e em seu livro.

Kadaré - Penso que há uma relação cultural muito estreita entre os povos na Antiguidade. Ao contrário do que imaginamos hoje, foi justamente a distância terrível que ajudou para que as informações trocadas entre eles fossem ainda mais estreitas, ricas e fortes. É uma ilusão dizer que hoje eles comuniquem mais do que antes.



Texto Anterior: Salles e Kadaré constroem a vingança de "Abril Despedaçado"
Próximo Texto: "Adaptação é magnífica", diz o escritor
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.