|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
O show do meio milhão
Os vizinhos de Fernando e
Esdras Dutra Pinto -sequestradores da filha de Silvio
Santos- manifestaram opiniões
que achei curiosas. Segundo a reportagem de Armando Antenore,
na Folha de 31 de agosto, dona
Edna, 27, perguntou: "O que significam R$ 500 mil para Silvio
Santos?". E Maria Isabel Amorim, 20, comentou que "R$ 500
mil não são nada para o Silvio".
Ela acrescentou que os sequestradores eram "mais ou menos heróis". Só faltava confundi-los com
Robin Hood, que roubava dos ricos para dar aos pobres.
O pai, Antônio Sebastião, segundo outra reportagem, afirmou que seus filhos, desempregados e vivendo de bicos, agiram
por frustração. É uma versão do
"ninguém é de ferro": você olha
para a riqueza dos outros que esbanjam, você não passa no vestibular, sente a amargura da injustiça e vai saber onde isso pára.
Tudo bem, acreditemos nessa
explicação paterna. Mas cuidado.
A história dos irmãos Pinto não é
um drama da miséria. Eles não
estavam desesperados para colocar comida na mesa da família
ou para oferecer um teto aos velhos pais carentes. Nada disso. Estavam frustrados na corrida social ordinária: queriam mais bugiganga de shopping center.
Qual é a transição entre essa
frustração banal e a decisão de
sair sequestrando e assassinando?
Não sabemos o que passou pela
cabeça de Fernando, de Esdras e
dos outros. Mas conhecemos o paradoxo brasileiro contemporâneo: a convivência, em cada sujeito, dos imperativos da modernidade com visões arcaicas das relações humanas e da atividade econômica.
Comecemos com um arcaísmo:
paira em nosso ar uma crença,
herdada do colonizador, pela
qual a riqueza não deve ser fruto
do esforço, mas de uma colheita
(sem plantio) ou de um saque. Ela
deve ser encontrada e levada embora. Nessa ótica, assim como os
diamantes vêm da terra e os maracujás, das árvores, o dinheiro
não vem do trabalho, vem dos outros. É só tirá-lo deles, como se
corta uma árvore de pau-brasil.
Surge assim o estereótipo colonial do caboclo perigoso e sonolento, cuja violência predatória é
felizmente atenuada pela indolência, pois ele espera que a ocasião se apresente e não gosta de
batalhar para que as coisas aconteçam. É o jacaré parado na beira
do rio.
A esse quadro acrescente-se o
motor da sociedade moderna: a
inveja. O truque da modernidade
é este: organizamos nossas diferenças e inventamos uma ordem
social nos medindo recíproca e invejosamente. "Esse cara é mais do
que eu: olhe o relógio dele. Aquele
cara é menos do que eu, olhe o
chinelo."
Motivados pela inveja, acumulamos, consumimos e produzimos
cada vez mais riquezas.
O que acontece quando esse
sentimento moderno se choca
com a convicção de que a riqueza
não é para ser produzida, mas para ser encontrada? Nesse caso, a
inveja, inventada para estimular
a alacridade produtiva de todos,
encoraja os anseios dos predadores. Você está com inveja e não
quer competir pelo trabalho? Não
fique esperando. Procure ativamente outros de quem arrancar
um pedaço. O jacaré fica furioso,
deixa a toca e vai para a cidade.
Esse pano de fundo talvez explique os discursos compreensivos
dos vizinhos e da família, para
quem o crime de Fernando e de
Esdras parece ser tolerável: ordinária administração de nossas relações sociais.
Mas algo mais fez com que o
drama vivido por Silvio Santos
aparecesse como uma encenação
do paradoxo entre modernidade
e arcaísmos obstinados do qual
sofremos.
O próprio Silvio Santos deve sua
popularidade à produção de programas que celebram a herança
colonial pela qual a riqueza é um
achado. O dinheiro chove, cai no
chão. É uma luta para agarrar as
notas. Mesmo assim, melhor isso
do que ganhá-las propriamente,
não é? Quem sabe, um dia, o Silvio me chame e seja minha vez de
encontrar uma grana no meu caminho.
A gente topa tudo por dinheiro.
Enfim, quase tudo: topa, por
exemplo, sequestrar a filha de Silvio Santos. Trabalhar já seria outra história. O sequestro, em suma, foi um momento, uma extensão do "Show do Milhão".
O clímax produziu-se quando
Fernando, sentindo que arriscava
a vida, procurou a proteção de
sua própria vítima. Até então, sabíamos que o sequestrador era invejoso e, nisso, moderno. Mas, à
diferença de um sujeito moderno,
em vez de emular produzindo, ele
partira para o saque. Por não
participar do "Show do Milhão",
contentara-se com R$ 500 mil.
Agora aparecia uma novidade:
para Fernando, Silvio Santos não
era apenas um sujeito qualquer,
que seria bom roubar. A igualdade do semelhante mais privilegiado é uma idéia moderna demais.
Silvio Santos, o invejável dispensador de riquezas, guardava, para Fernando, toda a autoridade
do senhor de outros tempos -dono de engenho ou coronel.
No fim da história, foi difícil dizer se o sequestrador queria mais
roubar ou receber de sua vítima a
proteção que é normalmente reservada a um afilhado.
Fernando nos apresentou, assim, um espelhinho deprimente,
no qual aparecia a figura perdida
e contraditória de um jovem invejoso, predador e arcaicamente
servil.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Canal Brasil faz três anos e pode ganhar concorrência da Band Próximo Texto: Artes plásticas: Os primeiros pós-modernos Índice
|