|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
Quem matou Sylvia Plath?
Está em cartaz nos EUA
"Sylvia", o filme de Christine
Jeffs que reconstitui os anos produtivos e finais da vida de Sylvia
Plath, a poeta americana que se
tornou famosa depois de seu suicídio, em 1963. A data de estréia
no Brasil ainda não é conhecida.
Resumindo: Sylvia, jovem bostoniana de classe média, órfã de
pai desde os oito anos, estudante
brilhante, ganhou uma bolsa para uma pós-graduação em literatura na Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Lá, em
1956, encontrou Ted Hughes, jovem poeta inglês. Casaram-se e
viveram seis anos oscilando entre
os Estados Unidos e a Inglaterra,
atrás de empregos e inspirações.
Uma filha nasceu em 1960, e um
filho, em 1962.
Nesse período, Ted Hughes publicou, ganhou prêmios e consolidou sua fama de poeta. Para
Sylvia, escrever era mais difícil, e
a coisa piorou com o nascimento
dos filhos. Quando, em 1960, ela
publicou seu primeiro livro, "The
Colossus", só houve uma resenha.
No meio disso, Ted Hughes, embora apaixonado por sua mulher,
arrumou uma amante. Talvez
Sylvia fosse "intensa" demais.
Talvez, simplesmente, ele gostasse
de pular a cerca: era o que Sylvia
(frágil, possessiva e ciumenta)
pensava.
Em 1962, o casal separou-se.
Sylvia passou o inverno europeu
sozinha com os filhos, em Londres, escrevendo como nunca. Em
fevereiro de 1963, não aguentou
mais e abriu a torneira do gás.
Quem matou Sylvia Plath? O
filme evita atribuir o malogro de
Sylvia a algum agente maléfico,
seja o marido infiel, seja a fria
mãe da poeta. Também não se
aventura no terreno minado da
psicopatologia. Sylvia carregava
consigo um passado de depressões
e de tentativas de suicídio, mas é
tarde para entrevistar Ruth
Beutscher, a psiquiatra que repetidamente tentou ajudá-la. E,
mesmo que fosse possível, nada
prova que ela teria uma resposta.
Ficamos com a visão tocante de
uma infelicidade angustiada e intolerável que está ao alcance de
todos: um desespero que, num
canto mais ou menos recôndito
da mente, cada um poderia despertar e alimentar.
Quando Sylvia morreu, a colega
Anne Sexton, que era mestre em
cinismo amargo, comentou: "Escolha boa para a carreira". Claro,
não acho que o suicídio de Sylvia
Plath tenha sido maquiavélico.
Mas o ato foi mesmo um sucesso
profissional e amoroso.
Como efeito do suicídio de
Sylvia, o marido foi condenado a
tomar conta das crianças que durante anos tinham absorvido
muitas das energias da poeta enquanto Ted escrevia e palestrava.
O suicídio também transformou
Ted Hughes (que, dos dois, era,
até então, o poeta de sucesso) em
revisor e editor dos manuscritos
inéditos de sua mulher, a começar
por "Ariel", que Sylvia deixou em
cima da mesa de trabalho. Até
1963, talvez alguns soubessem que
Ted Hughes, poeta inglês, era casado com uma americana "bonitinha" que também escrevia poesia. No fim dos anos 60, qualquer
um que gostasse de literatura sabia que Sylvia Plath era uma
grande poeta e, se alguém evocasse o nome de Ted Hughes, seria
por ele ser "o marido de Sylvia
Plath".
Sem discutir a qualidade da
produção de Sylvia, o fato é que o
suicídio lhe conferiu uma extraordinária credibilidade. É assim: se ela se matou, supõe-se que,
em seus versos, haja algo forte, perigoso de tão verdadeiro. Ou seja,
nós, leitores, validamos espontaneamente o argumento costumeiro de qualquer adolescente que
ameace se suicidar: aí, na frente
de meu cadáver, vocês vão ter que
me levar a sério.
Sem suicídio, talvez Sylvia Plath
fosse mais um nome nas antologias de poetas americanas da segunda metade do século 20.
Confesso que nunca fui um
grande fã de sua poesia. Se tivesse
que escolher uma poeta americana da mesma época, preferiria
certamente Anne Sexton.
Só que Anne Sexton, delirante,
detestando os efeitos da thorazine
em seu corpo, também se suicidou, embora mais tarde, em 1974.
Como fica? Poeta boa tem que
se matar?
Nada disso. Há uma longa lista
de excelentes poetas americanas
do século 20 que não se mataram:
Adrienne Rich, Muriel Rukeyser,
May Swenson, Denise Levertov,
Elizabeth Bishop (minha preferida é Adrienne Rich, de quem recomendo "An Atlas of the Difficult Life"). Ora, com a exceção de
Bishop (conhecida no Brasil porque viveu muitos anos em Petrópolis e traduziu poetas nacionais
para o inglês), só leitores patenteados de poesia conhecem os nomes dessa lista. Enquanto muitos,
se não todos, ouviram falar de
Sylvia Plath e Anne Sexton.
Parece que a radicalidade da
escolha suicida funcionou, para
nós, como uma garantia de alguma qualidade de seus textos.
Apostamos que sua poesia lide
com uma questão crucial também (se não sobretudo) porque
elas se mataram.
Ora, a questão mais importante
talvez não emane de suas obras,
mas de nossa reação a suas mortes. É a seguinte: em qual sensação constante de inautenticidade
e de falsidade vivemos para que o
suicídio nos apareça facilmente
como o sinal de que alguém levou
a vida a sério?
Estranho paradoxo: o suicídio
funciona como prova da "autenticidade" de quem se matou. Mas
que existência é a nossa, se, para
nós, a morte pode ratificar a qualidade da experiência de uma vida?
ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Música: Descontração marca premiação latina Próximo Texto: Teatro: Prosa e "luta" de Sérgio Britto ganham o palco Índice
|