São Paulo, terça-feira, 06 de novembro de 2007

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CECILIA GIANNETTI

A garçonete do pub irlandês

Ele me contava as coisas e eu só entendia metade. Meu inglês dá pro gasto, mas inglês de irlandês bêbado é outra parada

"O GRINGO mais doido que já parou no pub? Nenhum desses que acabam a noite aqui depois do Tim Festival. Tinha esse irlandês, Christy "Twodogs" (dois cachorros), que levou um pé da namorada e largou o caminhão na Irlanda pra trampar como fiscal de minas na África do Sul.
Depois veio pra cá, aparecia aqui todo santo dia. Sentava colado ao balcão, puxava conversa, enchendo a cara com a grana que fez coordenando trabalhos forçados. Ele me contava as coisas e eu só entendia metade. Meu inglês dá pro gasto, mas inglês de irlandês bêbado é outra parada.
Dizia que a fome do brasileiro jogado na rua, pedindo um troco a quem sai do banco, é ridícula perto do que viu na África, onde tinha vergonha de comer e beber com as ruas lotadas de cadáveres e zumbis esqueléticos.
Mas não acho que dê pra comparar. Falei pra ele do Nordeste, não serviu. "Nunca mais quero ver aqueles rostos novamente, dá vergonha de estar vivo", dizia, entre uma caneca e outra de cerveja escura e cremosa a R$ 19.
Ele precisava de uns seis meses de Brasil pra se reafirmar como "ser humano". Estava ficando compassivo demais, deprimido demais, preocupado demais com aquele desfile de restos de gente.
Isso eu entendi, mesmo sem conseguir pescar todas as frases do cara: pra ele, Brasil era refresco.
Tinha 52 anos, usava dois brincos de argola dourados e grossos na orelha esquerda. Tipo um Bono Vox daqui a uma década, ou menos.
Perguntei das argolas, pra quê. Ele levantou e me fez sair de trás do balcão pra me mostrar o mapa da Irlanda, ali do lado do relógio da Guiness. Aí ele fez com o dedo um trajeto que cobria o mapa todinho, falando dos ciganos irlandeses -"Tinkers", são chamados disso, mas não gostam do nome.
Não lêem mãos na rua, não têm origem "Roma", são só viajantes. Era a turma dele, minoria mais esculachada do Reino Unido, "não tiveram nada a ver com as besteiras que eu fiz". Contou que explodiu um carro em Omagh nos anos 90.
"Alguém tinha que se mexer", justificou. Do jeito que falava da Inglaterra, dava pra ter raiva até dos Beatles.
No braço esquerdo, tinha uma tatuagem malfeita de uma fênix, que ele dizia que era o símbolo do renascimento da Irlanda forte.
No Brasil, fez outra fênix no braço direito. Essa ele dizia que era o símbolo do seu renascimento. Um dia veio com um papo de casamento. Cheguei a topar, mas assim que fiquei sóbria e saquei que ele não estava brincando nem me oferecendo só um jeito de obter dupla nacionalidade, pulei fora.
Ele ficou mal e passou a andar atrás de mim feito cachorro. Depois de um tempão me enchendo com essa história, ele desistiu.
Acabei tirando folga do bar na noite da despedida dele. Fiz de propósito, mas porque eu realmente não acreditava que ele ia embora. Nosso maior problema foi de comunicação mesmo. Não entendia metade do que ele falava."


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