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CECILIA GIANNETTI
A garçonete do pub irlandês
Ele me contava as coisas e eu só entendia metade. Meu inglês dá pro gasto, mas inglês de irlandês bêbado é outra parada
"O GRINGO mais doido que
já parou no pub? Nenhum desses que acabam a noite aqui depois do Tim Festival. Tinha esse irlandês, Christy
"Twodogs" (dois cachorros), que levou um pé da namorada e largou
o caminhão na Irlanda pra trampar
como fiscal de minas na África
do Sul.
Depois veio pra cá, aparecia aqui
todo santo dia. Sentava colado ao
balcão, puxava conversa, enchendo
a cara com a grana que fez coordenando trabalhos forçados. Ele me
contava as coisas e eu só entendia
metade. Meu inglês dá pro gasto,
mas inglês de irlandês bêbado é
outra parada.
Dizia que a fome do brasileiro jogado na rua, pedindo um troco a
quem sai do banco, é ridícula perto
do que viu na África, onde tinha vergonha de comer e beber com as ruas
lotadas de cadáveres e zumbis
esqueléticos.
Mas não acho que dê pra comparar. Falei pra ele do Nordeste, não
serviu. "Nunca mais quero ver aqueles rostos novamente, dá vergonha
de estar vivo", dizia, entre uma caneca e outra de cerveja escura e cremosa a R$ 19.
Ele precisava de uns seis meses de
Brasil pra se reafirmar como "ser humano". Estava ficando compassivo
demais, deprimido demais, preocupado demais com aquele desfile de
restos de gente.
Isso eu entendi, mesmo sem conseguir pescar todas as frases do cara:
pra ele, Brasil era refresco.
Tinha 52 anos, usava dois brincos
de argola dourados e grossos na orelha esquerda. Tipo um Bono Vox daqui a uma década, ou menos.
Perguntei das argolas, pra quê. Ele
levantou e me fez sair de trás do balcão pra me mostrar o mapa da Irlanda, ali do lado do relógio da Guiness.
Aí ele fez com o dedo um trajeto que
cobria o mapa todinho, falando dos
ciganos irlandeses -"Tinkers", são
chamados disso, mas não gostam
do nome.
Não lêem mãos na rua, não têm
origem "Roma", são só viajantes. Era
a turma dele, minoria mais esculachada do Reino Unido, "não tiveram
nada a ver com as besteiras que eu
fiz". Contou que explodiu um carro
em Omagh nos anos 90.
"Alguém tinha que se mexer", justificou. Do jeito que falava da Inglaterra, dava pra ter raiva até dos
Beatles.
No braço esquerdo, tinha uma tatuagem malfeita de uma fênix, que
ele dizia que era o símbolo do renascimento da Irlanda forte.
No Brasil, fez outra fênix no braço
direito. Essa ele dizia que era o símbolo do seu renascimento. Um dia
veio com um papo de casamento.
Cheguei a topar, mas assim que fiquei sóbria e saquei que ele não estava brincando nem me oferecendo só
um jeito de obter dupla nacionalidade, pulei fora.
Ele ficou mal e passou a andar
atrás de mim feito cachorro. Depois
de um tempão me enchendo com
essa história, ele desistiu.
Acabei tirando folga do bar na noite da despedida dele. Fiz de propósito, mas porque eu realmente não
acreditava que ele ia embora. Nosso
maior problema foi de comunicação
mesmo. Não entendia metade do
que ele falava."
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