São Paulo, sexta, 6 de novembro de 1998

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MÚSICA
Cantor fala sobre o seu novo CD, "As Cidades", o primeiro de inéditas em cinco anos, e sobre a política FHC
"Triste é minha voz', diz Chico Buarque

Rosane Marinho/Folha Imagem
Cantor Chico Buarque, que lança hoje seu álbum "As Cidades", disponível nas lojas desde a semana passada


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
enviado especial ao Rio

Chico Buarque, 54, volta às canções inéditas em "As Cidades", após cinco anos calado como compositor de álbuns. Na volta, volta disposto a falar e se vê às voltas, mais uma vez, com tema recorrente em sua obra artística: a política.
Desta vez, comenta críticas feitas por Fernando Henrique Cardoso e Mário Soares no recém-lançado livro "O Mundo em Português - Um Diálogo", de que seria "mais convencional" que Caetano Veloso e Gilberto Gil (segundo FHC) e "um pouco subordinado ainda a um certo esquema ideológico do passado" (segundo Soares).
Chico recebeu a Folha em seu apartamento, no Jardim Botânico, para falar de música e política. Leia trechos da entrevista a seguir.

Folha - Você é capaz de definir "As Cidades" em palavras?
Chico Buarque -
Não sou, não. Mesmo porque foi difícil escolher o título. Nem o próprio título define o disco, só dá idéia de algumas algumas imagens que estão frequentes nas canções.
Folha - É um disco triste?
Chico -
Não. Já me falaram de ser um disco não triste, mas menos solar, mais nublado. Acho que o que é triste é minha voz. Canto canções que são engraçadas, cheias de humor. Vários comentários são irônicos. Na abundância de cordas em "Cecília" há uma ironia com toda a letra, que fala da inveja que este cantor sente dos grandes cantores que cantam em grandes orquestras. Que a voz é triste, é, mas foi uma opção estética que me pareceu adequada.
Folha - Uma opção estética, não ideológica?
Chico -
Simplesmente estética.
Folha - O que você pretendia nesse disco? Existe unidade nele?
Chico -
Não, no começo não havia unidade nenhuma. Partiu de canções dispersas, que não faziam parte de uma idéia de disco. A idéia surgiu com a entrada das últimas seis músicas. Mas é difícil de definir. É estética, não é ideologia.
Folha - A unidade não pode estar em ser um disco geográfico?
Chico -
Daí o título "As Cidades". Quando veio o título, vi que era claro que era. São cidades sonhadas, imaginárias. Várias canções falam disso.
Folha - Você está à procura de um lugar?
Chico -
É um personagem misto, não sou eu. Ele está viajando aparentemente sem rumo, sobrevoando cidades.
Folha - Você está sem rumo?
Folha - Como não sou eu esse personagem, como "eu" é um outro, posso falar na terceira pessoa. Esse sujeito, esse protagonista está navegando sem rumo.
Folha - Você sempre foi tão atuante na música quanto politicamente, e a despolitização do Brasil é acompanhada por sua despolitização. A falta de rumo vem daí?
Chico -
Vou discordar frontalmente, porque se a política interferiu na minha criação, foi de forma nociva. Não me arrependo, mas em termos artísticos não me acrescentou grande coisa. Minhas músicas mais marcadamente políticas são as que tem menor qualidade estética, no meu ponto de vista.
Folha - Não é simbólico você ter sido um dos artistas mais censurados do Brasil?
Chico -
Fui atuante, falava muito. Mas foi chegando a hora de ser mais artista e menos político. O fim das ditaduras e a queda do Muro de Berlim já eram sinais de que se encerrava esse conflito e se despolitizava o mundo. A função política do artista se enfraqueceu. Antes nós, artistas, nos reuníamos para lutar pelos direitos autorais, pela numeração dos discos. Talvez hoje quem esteja mais em evidência na indústria tenha menos preocupação social. É normal, o mundo está despolitizado.
Folha - As pessoas mais em evidência hoje são as da axé music e do pagode. O que isso significa?
Chico -
Não tenho nada contra, só estou constatando que são pessoas que estão num tipo de roda viva muito mais violento que aquele de que eu falava em 1968. Absolutamente não há como sentar com esse pessoal para conversar. Hoje, até a participação política faz parte do show business. As últimas eleições deram uma idéia de que essa apatia está para se resolver. Até houve um certo rebuliço nesse marasmo político que estava existindo desde a derrota de 89.
Folha - Que derrota?
Chico -
A última grande movimentação política nacional foi a eleição de 89, quando a sociedade inteira se dividiu e houve a possibilidade de haver uma mudança significativa com a eleição do Lula. Ali acho que foi a grande porrada.
Folha - Queira ou não, você ainda vai ao noticiário político, quando o presidente do Brasil o chama num livro de artista "da elite tradicional", "que quer ser crítico, mas é mais convencional" que Caetano e Gil. Como você recebe isso?
Chico -
Com indiferença, sinceramente. Não estou dando trela para esse assunto. Acho um comentário desimportante, é conversa de cozinha, não sei por que saiu em livro. Não acho que seja surpreendente que ele diga isso, nem que haja motivos para eu me chatear. É um comentário pessoal. Minha divergência com Fernando Henrique não é de ordem pessoal.
Folha - Ele está transferindo uma crítica política ao plano artístico?
Chico -
Parece que sim. Não me parece uma crítica musical. Seria estranho que dois chefes de Estado estivessem conversando sobre música popular e se pusessem a fazer considerações críticas. É mais lógico que seja uma crítica política.
Não concordo com 90% do que Fernando Henrique tem falado. Já não concordava antes da primeira eleição. Na época, ele falou que eu estava equivocado, porque disse que gostaria que Lula vencesse e formasse um amplo quadro de apoio com lugar para ilustres tucanos. Preferia ver Fernando Henrique num governo do Lula a vê-lo no PFL. Mantenho o que eu disse.
É difícil, no Brasil, o homem público assumir a posição da direita. Em qualquer lugar, quem pratica ideário da direita se diz de direita. Talvez aqui, por causa da ditadura, a direita tenha ficado estigmatizada. Mas não é ofensa para ninguém, na França o Chirac, um político de centro, se diz de direita.
Folha - É verdade que "Injuriado" é dirigida a FHC?
Chico -
Isso é uma piada, só rindo. Primeiro porque não fiquei injuriado com nada, segundo porque nunca vou chamar Fernando Henrique de meu bem.
Folha - Você ficou parado no tempo?
Chico -
Não acredito. Quando gravo um disco, intimamente tenho a convicção de estar dando um passo adiante em relação ao que fiz antes. Esse passo é talvez mais lento, mais custoso, mais penoso. Estou andando mais devagar, mas acho que estou andando.
Folha - Você acha que compositores deveriam se aposentar?
Chico -
Acredito que naturalmente, na canção popular, a tendência seja ir ficando mais lento até deixar de existir. Acho que uma hora vá me desinteressar por fazer música.
Talvez esteja me preparando para isso me dedicando à literatura. Acredito mesmo que música popular seja uma arte de juventude. O que componho é com o que me resta de juventude, que já não é tanto. E vai acabar. Vou ficar velho, caduco e vou morrer.



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