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ARTIGO
Chico Buarque, Radiohead e saudade
ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
especial para a Folha
Céu cinza, sábado. Thom Yorke,
líder do Radiohead, avisa em estéreo que gostaria de ser à prova de
balas. Tudo bem.
São mais ou menos 13h, tenho à
mão boas amostras do que de melhor o cérebro humano produziu
em tempos recentes: o número da
"New Yorker" com a última entrevista do ditador Augusto Pinochet
antes de ser preso; a "Ray Gun" de
novembro, Marilyn Manson na capa; e uma edição da revista inglesa
de literatura "Granta", sob o sugestivo título "What Young Men Do".
Melhor começar pela "Granta",
que traz um artigo do autor americano Richard Ford sobre as origens do ato de escrever. Sábado
medonho, dia de folga, muitas horas para pôr a leitura em dia.
"The Bends", penúltimo álbum
do Radiohead, chega à faixa nove,
quando as coisas ficam realmente
sérias, uma sequência de "Bullet
Proof... I Wish I Was", "Black
Star", "Sulk" e "Fade Out".
É fácil sucumbir a Ford/Yorke,
esquecer que o mundo existe; mas
a realidade bate à porta, e me deparo com a capa da Ilustrada, sobre o
novo disco de... Chico Buarque.
Uma colisão de mundos, superposição de eras, evento cosmológico mesmo, acontece nesta tarde
sem graça de sábado: juntos, num
raio de um metro quadrado, ainda
que em textura de papel e CD, Richard Ford, Thom Yorke e Chico.
A reportagem informa que o novo disco de Chico Buarque, "As Cidades", abre com "Carioca", homenagem ao Rio. Outra canção,
"Injuriado", diz: "Dinheiro não lhe
emprestei/ Favores nunca lhe fiz/
Não alimentei seu gênio ruim/ Você nada está me devendo/ Por isso,
meu bem, não entendo/ Por que
anda agora falando de mim."
Temas cariocas, Versos brejeiros, porém sofisticados... Vêm dos
anos 30, Noel Rosa, Assis Valente.
E aqui começam os problemas.
Nos anos 70, Chico Buarque, artista de oposição ao regime militar,
era unanimidade nacional. Alinhado ao Partido Comunista, o
Partidão, Chico desempenhava na
esquerda o papel que o padre Marcelo Rossi tem hoje na Igreja Católica: ser a face popular, criativa e,
acima de tudo, sexualmente desejável de uma instituição que precisa desesperadamente se renovar.
As canções de Chico pagavam
tributo aos grandes mestres da
MPB, mas seu grande apelo estava
nas metáforas políticas, nas mensagens subliminares de protesto
contra o governo dos generais.
Veio a abertura, a censura acabou, e Chico teve de descer do altar
do Partidão. Tornou-se apenas
mais um compositor popular
-brilhante, anos-luz acima da
média, mas deixou de ser um farol,
a grande referência da MPB.
Sabiamente, daquela época aos
dias atuais, Chico apareceu pouco.
No mesmo período, seus contemporâneos de MPB se afundaram em polêmicas estéreis, deram
palpites sobre qualquer assunto:
leis de trânsito, estética globalizada, o futuro da antropologia. Tudo
cortina de fumaça para esconder
uma implacável estiagem criativa.
Mas o palavrório não foi o caminho de Chico: com elegância, dedicou-se a atividades tão caras à brasilidade afluente: jogar bola, tomar
uma de vez em quando, contemplar a beleza inigualável do Rio, a
capital mundial da saudade.
E saudade parece ser a palavra
que define hoje a música de Chico
e de outros nomes, velhos e "novos", da MPB. Saudade deles próprios há 20 anos, de Noel, do Rio
capital, do espírito malandro, da
baianidade idealizada.
Não escutei nem vou escutar o
novo disco, mas tenho uma certeza: qualquer das faixas poderia estar em "Chico Buarque", LP de
1978 (aquele com "Homenagem ao
Malandro", "Cálice" e "Pivete"). E
qualquer uma das canções de
"Chico Buarque" poderia ser
transposta para este "As Cidades".
Aqui, voltamos à urgência da
música do Radiohead, à contemporaneidade à flor da pele dos livros de Richard Ford. Claro, o Radiohead não existiria sem o Pink
Floyd, mas as músicas das duas
bandas não são intercambiáveis.
Richard Ford não escreveria como escreve se não tivesse lido William Faulkner, mas o caso aí é de
influência, não de estagnação.
Marilyn Manson, aquele que está
na capa da "Ray Gun", lançou um
disco de glitter rock, só que não se
limita a copiar David Bowie.
Certa vez, a jornalista Bia Abramo teorizou que, se Caetano e Gil
não tivessem conhecido os Mutantes (moleques cheios de idéias lisérgicas e discos importantes debaixo do braço), talvez a tropicália
nunca tivesse existido, talvez até
hoje, mergulhados na auto-referência e na pouca informação, estivessem à procura da linha evolutiva da MPB pós-João Gilberto.
Na tarde feia de sábado, Chico
Buarque, carioca boa-pinta, sujeito inteligente, é o símbolo triste de
uma constatação: o tempo passou
na janela, só a MPB não viu.
Álvaro Pereira Júnior, 35, é chefe de Redação
do "Fantástico" em São Paulo
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