São Paulo, sexta, 6 de novembro de 1998

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ARTIGO
Chico Buarque, Radiohead e saudade

ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
especial para a Folha

Céu cinza, sábado. Thom Yorke, líder do Radiohead, avisa em estéreo que gostaria de ser à prova de balas. Tudo bem.
São mais ou menos 13h, tenho à mão boas amostras do que de melhor o cérebro humano produziu em tempos recentes: o número da "New Yorker" com a última entrevista do ditador Augusto Pinochet antes de ser preso; a "Ray Gun" de novembro, Marilyn Manson na capa; e uma edição da revista inglesa de literatura "Granta", sob o sugestivo título "What Young Men Do".
Melhor começar pela "Granta", que traz um artigo do autor americano Richard Ford sobre as origens do ato de escrever. Sábado medonho, dia de folga, muitas horas para pôr a leitura em dia.
"The Bends", penúltimo álbum do Radiohead, chega à faixa nove, quando as coisas ficam realmente sérias, uma sequência de "Bullet Proof... I Wish I Was", "Black Star", "Sulk" e "Fade Out".
É fácil sucumbir a Ford/Yorke, esquecer que o mundo existe; mas a realidade bate à porta, e me deparo com a capa da Ilustrada, sobre o novo disco de... Chico Buarque.
Uma colisão de mundos, superposição de eras, evento cosmológico mesmo, acontece nesta tarde sem graça de sábado: juntos, num raio de um metro quadrado, ainda que em textura de papel e CD, Richard Ford, Thom Yorke e Chico.
A reportagem informa que o novo disco de Chico Buarque, "As Cidades", abre com "Carioca", homenagem ao Rio. Outra canção, "Injuriado", diz: "Dinheiro não lhe emprestei/ Favores nunca lhe fiz/ Não alimentei seu gênio ruim/ Você nada está me devendo/ Por isso, meu bem, não entendo/ Por que anda agora falando de mim."
Temas cariocas, Versos brejeiros, porém sofisticados... Vêm dos anos 30, Noel Rosa, Assis Valente. E aqui começam os problemas.
Nos anos 70, Chico Buarque, artista de oposição ao regime militar, era unanimidade nacional. Alinhado ao Partido Comunista, o Partidão, Chico desempenhava na esquerda o papel que o padre Marcelo Rossi tem hoje na Igreja Católica: ser a face popular, criativa e, acima de tudo, sexualmente desejável de uma instituição que precisa desesperadamente se renovar.
As canções de Chico pagavam tributo aos grandes mestres da MPB, mas seu grande apelo estava nas metáforas políticas, nas mensagens subliminares de protesto contra o governo dos generais.
Veio a abertura, a censura acabou, e Chico teve de descer do altar do Partidão. Tornou-se apenas mais um compositor popular -brilhante, anos-luz acima da média, mas deixou de ser um farol, a grande referência da MPB.
Sabiamente, daquela época aos dias atuais, Chico apareceu pouco.
No mesmo período, seus contemporâneos de MPB se afundaram em polêmicas estéreis, deram palpites sobre qualquer assunto: leis de trânsito, estética globalizada, o futuro da antropologia. Tudo cortina de fumaça para esconder uma implacável estiagem criativa.
Mas o palavrório não foi o caminho de Chico: com elegância, dedicou-se a atividades tão caras à brasilidade afluente: jogar bola, tomar uma de vez em quando, contemplar a beleza inigualável do Rio, a capital mundial da saudade.
E saudade parece ser a palavra que define hoje a música de Chico e de outros nomes, velhos e "novos", da MPB. Saudade deles próprios há 20 anos, de Noel, do Rio capital, do espírito malandro, da baianidade idealizada.
Não escutei nem vou escutar o novo disco, mas tenho uma certeza: qualquer das faixas poderia estar em "Chico Buarque", LP de 1978 (aquele com "Homenagem ao Malandro", "Cálice" e "Pivete"). E qualquer uma das canções de "Chico Buarque" poderia ser transposta para este "As Cidades".
Aqui, voltamos à urgência da música do Radiohead, à contemporaneidade à flor da pele dos livros de Richard Ford. Claro, o Radiohead não existiria sem o Pink Floyd, mas as músicas das duas bandas não são intercambiáveis.
Richard Ford não escreveria como escreve se não tivesse lido William Faulkner, mas o caso aí é de influência, não de estagnação.
Marilyn Manson, aquele que está na capa da "Ray Gun", lançou um disco de glitter rock, só que não se limita a copiar David Bowie.
Certa vez, a jornalista Bia Abramo teorizou que, se Caetano e Gil não tivessem conhecido os Mutantes (moleques cheios de idéias lisérgicas e discos importantes debaixo do braço), talvez a tropicália nunca tivesse existido, talvez até hoje, mergulhados na auto-referência e na pouca informação, estivessem à procura da linha evolutiva da MPB pós-João Gilberto.
Na tarde feia de sábado, Chico Buarque, carioca boa-pinta, sujeito inteligente, é o símbolo triste de uma constatação: o tempo passou na janela, só a MPB não viu.


Álvaro Pereira Júnior, 35, é chefe de Redação do "Fantástico" em São Paulo


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