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ARTIGO
Beleza demais é contravenção
TOM ZÉ
especial para a Folha
Fui ouvindo o novo CD de Chico
Buarque, "As Cidades", e me tornando feminina. Progressivamente desmiolada, por causa daquelas
desmelodias que quanto mais, tanto mais. Quanto mais a beleza crescia, mais confusa se tornava a possibilidade de distinguir o sexo daquele canto.
A melodia se mostrava agora para mim ser de um ente masculino.
Pois, quando se ausentava, na ousadia de uma composição não conservadora, ausentava-se por sua
vez o gênero. O que me punha confuso e atraído, traída.
Mas, como a voz do cantor era de
um, eu me distraía em uma. Se fosse melodia usual, afirmativamente
masculina, eu, profunda, conduziria minha atração para as paragens
da alma e, como macho, cavalgaria
aquela voz para amar as mulheres
como tese. Mas, privado de melodia trivial, eu batia de frente com a
beleza. E trazia das entranhas a alma feminina do meu amor.
Como em Félix Krull, talvez seja
isso que põe os homens envergonhados quando ouvem esse novo
disco de Chico, "As Cidades".
"As Cidades" é a paragem de onde quem busca Chico volta tosquiado. Um disco de cisco, rabiscos, um drible de futebol, ameaça
de sombras, frases musicais desencontradas e tremendos propósitos
de surpresa. E presa estou, eu, mulher, a esse homem sem corpo nem
melodia, que me promete canções
e só me dá diamantes em voz.
Meias melodias, sedução e meia,
mágico disfarçando fases da lua,
uma nota -de repente ela foge,
grave, ou mais aguda do que se esperava.
Eu, mulher, a me agarrar em
qualquer compasso, sem achar o
canto, só o homem. Doce voz.
Começa outra canção. E no presente estou no passado, nos joelhos de Nara Leão. Sentada toda
em graça, moça lanosa de pele há
duas gerações, curtida em cremes e
bons alimentos.
Resultado: os joelhos lindos de
1965, no programa de televisão em
branco e preto, ali diante de Chico.
O público se afligindo, exacerbando-se em possibilidades de casal
veronês. Chico não vê nada: nem
joelhos, nem Nara. Fumando,
queima, ininterruptos, os cigarros
da própria timidez. Olha fixamente a desmelodia de "A Cidades", futuro disco de 1998.
O pior de tudo, voltando ao tópico "exagero", é que o senhor se excedeu em beleza, seu Chico. Beleza
demais é contravenção. Resultado,
quem sabe, de sua promiscuidade,
em sonhos e sons, com certos governantes da América Latina.
²
Beleza
Tanta beleza é subversão, é Fidel
Castro e Jesus Cristo. É o mais deslavado comunismo. É verdade que
o senhor se desculpa, no final. Logo se vê que por influência de Hermínio Belo de Carvalho.
Mas é tarde para o senhor se arrepender. Não é aceitável. Afinal, arrependidos de última hora são
muitos, Danton, Marat, Cuíca de
Santo Amaro, Guerra Junqueiro.
Ou o senhor dará mais munição a
Tinhorão e Suassuna: "Lamentável", declararão eles. "Prova-se,
nessa instância, que música baiana
é lixo."
E lá vem um grito candial e o feitiço se volta contra o feiticeiro.
²
Tom Zé, 62, é músico, compositor tropicalista
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