São Paulo, sexta, 6 de novembro de 1998

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ARTIGO
Beleza demais é contravenção

TOM ZÉ
especial para a Folha

Fui ouvindo o novo CD de Chico Buarque, "As Cidades", e me tornando feminina. Progressivamente desmiolada, por causa daquelas desmelodias que quanto mais, tanto mais. Quanto mais a beleza crescia, mais confusa se tornava a possibilidade de distinguir o sexo daquele canto.
A melodia se mostrava agora para mim ser de um ente masculino. Pois, quando se ausentava, na ousadia de uma composição não conservadora, ausentava-se por sua vez o gênero. O que me punha confuso e atraído, traída.
Mas, como a voz do cantor era de um, eu me distraía em uma. Se fosse melodia usual, afirmativamente masculina, eu, profunda, conduziria minha atração para as paragens da alma e, como macho, cavalgaria aquela voz para amar as mulheres como tese. Mas, privado de melodia trivial, eu batia de frente com a beleza. E trazia das entranhas a alma feminina do meu amor.
Como em Félix Krull, talvez seja isso que põe os homens envergonhados quando ouvem esse novo disco de Chico, "As Cidades".
"As Cidades" é a paragem de onde quem busca Chico volta tosquiado. Um disco de cisco, rabiscos, um drible de futebol, ameaça de sombras, frases musicais desencontradas e tremendos propósitos de surpresa. E presa estou, eu, mulher, a esse homem sem corpo nem melodia, que me promete canções e só me dá diamantes em voz.
Meias melodias, sedução e meia, mágico disfarçando fases da lua, uma nota -de repente ela foge, grave, ou mais aguda do que se esperava.
Eu, mulher, a me agarrar em qualquer compasso, sem achar o canto, só o homem. Doce voz.
Começa outra canção. E no presente estou no passado, nos joelhos de Nara Leão. Sentada toda em graça, moça lanosa de pele há duas gerações, curtida em cremes e bons alimentos.
Resultado: os joelhos lindos de 1965, no programa de televisão em branco e preto, ali diante de Chico. O público se afligindo, exacerbando-se em possibilidades de casal veronês. Chico não vê nada: nem joelhos, nem Nara. Fumando, queima, ininterruptos, os cigarros da própria timidez. Olha fixamente a desmelodia de "A Cidades", futuro disco de 1998.
O pior de tudo, voltando ao tópico "exagero", é que o senhor se excedeu em beleza, seu Chico. Beleza demais é contravenção. Resultado, quem sabe, de sua promiscuidade, em sonhos e sons, com certos governantes da América Latina.
²
Beleza
Tanta beleza é subversão, é Fidel Castro e Jesus Cristo. É o mais deslavado comunismo. É verdade que o senhor se desculpa, no final. Logo se vê que por influência de Hermínio Belo de Carvalho.
Mas é tarde para o senhor se arrepender. Não é aceitável. Afinal, arrependidos de última hora são muitos, Danton, Marat, Cuíca de Santo Amaro, Guerra Junqueiro. Ou o senhor dará mais munição a Tinhorão e Suassuna: "Lamentável", declararão eles. "Prova-se, nessa instância, que música baiana é lixo."
E lá vem um grito candial e o feitiço se volta contra o feiticeiro.
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Tom Zé, 62, é músico, compositor tropicalista



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