São Paulo, sábado, 07 de abril de 2001

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A verdade na casa dos espelhos

Questão da identidade em Pirandello extrapola o teatro, como mostram livro de novelas, da Berlendis & Vertecchia, e romance, da Cosac & Naify

Quando eu era louco...

(de "O Velho Deus")

Antes de mais nada peço licença para adiantar que agora sou sábio. Oh, e por isso, também pobre. Também careca. Quando eu ainda era eu, quero dizer, o honrado senhor Fausto Bandini, rico, e na cabeça tinha todos os meus belíssimos cabelos, já está mais do que provado que eu era louco. E um pouco mais magro, é claro. Mas já tinha esses olhos, desde então assustados, na cara assim toda marcada pelas expressões assumidas por causa das piedades crônicas que me afligiam.
Por distração, de vez em quando eu tenho uma recaída. Mas são fagulhas que Marta, sábia mulher, logo apaga em mim com certas terríveis palavrinhas suas.
Por exemplo, aquela tarde.
Coisa passageira, note-se. O que poderia acontecer a um pobre sábio e sábio pobre, obrigado a viver mais ordenadamente que uma formiga?
Quanto mais tênue o pano, mais delicado o brocado, li uma vez, não sei onde. Mas antes de mais nada seria preciso saber bordar.
Eu estava voltando para casa. Não existe, creio, maior incômodo que o causado pela insistência de um pedinte quando não temos dinheiro no bolso e aquele nos veja como se estivéssemos dispostíssimos a dá-lo. Era, no meu caso, uma garota. Sem interrupção, com uma voz choramingadora, há um quarto de hora andava atrás de mim repetindo as mesmas frases, duas ou três. Eu, surdo; sem olhar para ela. A certo ponto, ela me deixa: investe e gruda, como uma mosca varejeira, em um jovem casal.
"Será que eles lhe darão uma esmola?" digo a mim mesmo.
Ah, tu não sabes, garota! Na primeira vez que os recém-casados andam pela rua de braços dados, crêem ter todos os olhos do mundo voltados para si; sentem o embaraço das coisas novas que todos aqueles olhos vêem e supõem neles, e não conseguem, nem podem parar para dar uma esmola ao pobre.
Escuto pouco depois, de fato, alguém correndo atrás de mim, gritando:
- Senhor, senhor.
E lá vem ela de novo, com a choradeira monótona de antes. Não aguento mais; grito exasperado:
- Não!
Pior. Como se, com aquele não, eu tivesse soltado um outro par de frases guardado para esse caso. Bufo uma vez, bufo de novo, finalmente: ufa! - levanto a bengala. Assim. Ela sai de lado, levantando instintivamente o braço para proteger a cabeça, e de trás do cotovelo geme: - Mesmo dois centavos!
Deus, que olhos abria aquele rosto esquelético e amarelado, debaixo dos cabelos vermelhos e emaranhados. Todos os vícios da rua verminavam naqueles olhos; e a precocidade os deixava assustadores. (Não ponho nenhum ponto de exclamação porque, agora que sou sábio, nada mais deve me surpreender.)
Já antes de ver aqueles seus olhos tinha me arrependido do ato de ameaça.
- Quantos anos tens?
A garota me olha de soslaio, sem abaixar o braço, e não responde.
- Por que não trabalhas?
- Quisera eu, se encontrasse trabalho. Não encontro.
- Tu não procuras -digo-lhe eu, encaminhando-me. - Porque tomaste gosto por esta tua bela profissão.
Nem é preciso dizê-lo; ela me seguiu retomando a aflitiva ladainha: que tinha fome, que lhe desse alguma coisa pelo amor de Deus.
Podia eu tirar o casaco e dizer-lhe "Toma"? Quem sabe: em outros tempos, talvez o faria. Bem, mas em outros tempos, eu teria um trocado no bolso.
Veio-me repentinamente uma idéia, pela qual sinto o dever de desculpar-me em consideração às pessoas sábias. Trabalhar -é sem dúvida um bom conselho; mas é tão fácil dá-lo. Ocorreu-me que Marta estava procurando uma criada.
E note-se: qualifico de loucura esta idéia repentina, não tanto pela trépida alegria que me suscitou e que reconheci muito bem de imediato, por tê-la experimentado outras vezes tal e qual, quando eu era louco; espécie de ebriedade ofuscante que dura um momento, um instante, no qual o mundo parece dar um grande sobressalto e abalar tudo dentro de nós; quanto pelas reflexões de pobre sábio com as quais eu logo tentei escorar aquela ebriedade em mim. Pensei: "Mesmo se nós só dermos de comer, um lugar para dormir e alguma roupa velha a esta garota, ela nos será útil, sem querer mais nada. Será até uma economia para Marta". Assim.
- Escuta -eu disse à garota-; dinheiro, não te dou. Queres realmente trabalhar?
Ela parou um pouco para me olhar com aqueles olhos esquivos, sob os cílios odiosamente franzidos; depois acenou algumas vezes com a cabeça.
- Sim? Bem, então vem comigo. Eu te darei trabalho em minha casa.
A garota parou de novo, perplexa.
- E mamãe?
- Irás avisá-la depois. Agora vem.
Parecia que eu caminhava por uma outra avenida e que... tenho vergonha de dizê-lo, as casas e as arvorezinhas estivessem com a mesma agitação que eu experimentava. E a agitação aumentou, aumentou progressivamente, à medida que eu me aproximava de casa.
Que diria minha mulher?
De modo mais pateta eu não podia ter-lhe apresentado a proposta (eu gaguejava). E óbvio, mais do que óbvio que este jeito pateta contribuiu não só para que ela recusasse a proposta, como era justo, mas também para que ela ficasse com raiva, pobre Marta. Mas se eu, agora que me tornei sábio, com o temor contínuo que me escape alguma extravagância, não consigo dizer nem duas palavras, uma depois da outra? Basta; minha mulher não perdeu a ocasião de repetir aquele seu terrível: "Ainda? Ainda?" que para mim é pior que uma ducha de água fria; depois mandou a garota embora sem nem querer dar-lhe alguma coisinha, porque -disse- ela já tinha feito caridade naquele dia. (E realmente Marta faz caridade todos os dias; note-se: dá uma esmola ao primeiro pobre que aparece e, tendo dado aquela esmola e dito: "Encomenda-me às almas santas do Purgatório", fez as pazes com a consciência e não escuta mais nada.)
Enquanto isso, eu penso e digo: aquela garota, se já não está, estará perdida certamente em breve. Sim, mas que me importa isso? Eu, agora, tornei-me sábio, e nessas coisas não devo pensar nem um pouco, nem nada. -"Pensar em mim!"- este, meu novo lema. Custei a fazê-lo guiar todos os atos desta minha nova vida, vamos chamá-la assim. Mas, como Deus queira, não se fazendo nada... Bata. Se eu agora, a título de exemplo, paro embaixo da janela de uma casa em que saiba que há gente chorando, devo imediatamente ver naquela janela a minha imagem perdida, desaparecida, que, fazendo-se à janela, tem a obrigação expressa de gritar-me lá de cima, pendendo um pouco a cabeça e apontando o indicador de uma mão para o próprio peito: "E eu?". Assim.
Sempre: "E eu?" em todas as ocasiões. Porque essa é a base da verdadeira sabedoria.
Já quando eu era louco...


"A Esmola", capítulo inicial de "Quando Eu Era Louco...", do livro "O Velho Deus", primeiro volume de "Novelas para um Ano", da editora Berlendis & Vertecchia O italiano Luigi Pirandello (1867-1936), conhecido como dramaturgo, tem dois volumes de prosa lançados este mês no Brasil

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