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A verdade na casa dos espelhos
Questão da identidade em Pirandello extrapola o teatro, como mostram livro de
novelas, da Berlendis & Vertecchia, e romance, da Cosac & Naify
Quando eu era louco... (de "O Velho Deus")
Antes de mais nada peço licença para
adiantar que agora sou sábio. Oh, e
por isso, também pobre. Também
careca. Quando eu ainda era eu, quero dizer, o honrado senhor Fausto Bandini, rico, e na cabeça tinha todos os meus belíssimos
cabelos, já está mais do que provado que eu
era louco. E um pouco mais magro, é claro.
Mas já tinha esses olhos, desde então assustados, na cara assim toda marcada pelas expressões assumidas por causa das piedades crônicas que me afligiam.
Por distração, de vez em quando eu tenho
uma recaída. Mas são fagulhas que Marta, sábia mulher, logo apaga em mim com certas
terríveis palavrinhas suas.
Por exemplo, aquela tarde.
Coisa passageira, note-se. O que poderia
acontecer a um pobre sábio e sábio pobre,
obrigado a viver mais ordenadamente que
uma formiga?
Quanto mais tênue o pano, mais delicado o
brocado, li uma vez, não sei onde. Mas antes
de mais nada seria preciso saber bordar.
Eu estava voltando para casa. Não existe,
creio, maior incômodo que o causado pela insistência de um pedinte quando não temos dinheiro no bolso e aquele nos veja como se estivéssemos dispostíssimos a dá-lo. Era, no meu
caso, uma garota. Sem interrupção, com uma
voz choramingadora, há um quarto de hora
andava atrás de mim repetindo as mesmas frases, duas ou três. Eu, surdo; sem olhar para ela.
A certo ponto, ela me deixa: investe e gruda,
como uma mosca varejeira, em um jovem casal.
"Será que eles lhe darão uma esmola?" digo a
mim mesmo.
Ah, tu não sabes, garota! Na primeira vez
que os recém-casados andam pela rua de braços dados, crêem ter todos os olhos do mundo
voltados para si; sentem o embaraço das coisas
novas que todos aqueles olhos vêem e supõem
neles, e não conseguem, nem podem parar para dar uma esmola ao pobre.
Escuto pouco depois, de fato, alguém correndo atrás de mim, gritando:
- Senhor, senhor.
E lá vem ela de novo, com a choradeira monótona de antes. Não aguento mais; grito exasperado:
- Não!
Pior. Como se, com aquele não, eu tivesse
soltado um outro par de frases guardado para
esse caso. Bufo uma vez, bufo de novo, finalmente: ufa! - levanto a bengala. Assim. Ela
sai de lado, levantando instintivamente o braço para proteger a cabeça, e de trás do cotovelo
geme: - Mesmo dois centavos!
Deus, que olhos abria aquele rosto esquelético e amarelado, debaixo dos cabelos vermelhos e emaranhados. Todos os vícios da rua
verminavam naqueles olhos; e a precocidade
os deixava assustadores. (Não ponho nenhum
ponto de exclamação porque, agora que sou
sábio, nada mais deve me surpreender.)
Já antes de ver aqueles seus olhos tinha me
arrependido do ato de ameaça.
- Quantos anos tens?
A garota me olha de soslaio, sem abaixar o
braço, e não responde.
- Por que não trabalhas?
- Quisera eu, se encontrasse trabalho. Não
encontro.
- Tu não procuras -digo-lhe eu, encaminhando-me. - Porque tomaste gosto por esta
tua bela profissão.
Nem é preciso dizê-lo; ela me seguiu retomando a aflitiva ladainha: que tinha fome, que
lhe desse alguma coisa pelo amor de Deus.
Podia eu tirar o casaco e dizer-lhe "Toma"?
Quem sabe: em outros tempos, talvez o faria.
Bem, mas em outros tempos, eu teria um trocado no bolso.
Veio-me repentinamente uma idéia, pela
qual sinto o dever de desculpar-me em consideração às pessoas sábias. Trabalhar -é sem
dúvida um bom conselho; mas é tão fácil dá-lo. Ocorreu-me que Marta estava procurando
uma criada.
E note-se: qualifico de loucura esta idéia repentina, não tanto pela trépida alegria que me
suscitou e que reconheci muito bem de imediato, por tê-la experimentado outras vezes tal
e qual, quando eu era louco; espécie de ebriedade ofuscante que dura um momento, um
instante, no qual o mundo parece dar um
grande sobressalto e abalar tudo dentro de
nós; quanto pelas reflexões de pobre sábio
com as quais eu logo tentei escorar aquela
ebriedade em mim. Pensei: "Mesmo se nós só
dermos de comer, um lugar para dormir e alguma roupa velha a esta garota, ela nos será
útil, sem querer mais nada. Será até uma economia para Marta". Assim.
- Escuta -eu disse à garota-; dinheiro,
não te dou. Queres realmente trabalhar?
Ela parou um pouco para me olhar com
aqueles olhos esquivos, sob os cílios odiosamente franzidos; depois acenou algumas vezes
com a cabeça.
- Sim? Bem, então vem comigo. Eu te darei
trabalho em minha casa.
A garota parou de novo, perplexa.
- E mamãe?
- Irás avisá-la depois. Agora vem.
Parecia que eu caminhava por uma outra
avenida e que... tenho vergonha de dizê-lo, as
casas e as arvorezinhas estivessem com a mesma agitação que eu experimentava. E a agitação aumentou, aumentou progressivamente,
à medida que eu me aproximava de casa.
Que diria minha mulher?
De modo mais pateta eu não podia ter-lhe
apresentado a proposta (eu gaguejava). E óbvio, mais do que óbvio que este jeito pateta
contribuiu não só para que ela recusasse a proposta, como era justo, mas também para que
ela ficasse com raiva, pobre Marta. Mas se eu,
agora que me tornei sábio, com o temor contínuo que me escape alguma extravagância, não
consigo dizer nem duas palavras, uma depois
da outra? Basta; minha mulher não perdeu a
ocasião de repetir aquele seu terrível: "Ainda?
Ainda?" que para mim é pior que uma ducha
de água fria; depois mandou a garota embora
sem nem querer dar-lhe alguma coisinha, porque -disse- ela já tinha feito caridade naquele dia. (E realmente Marta faz caridade todos os dias; note-se: dá uma esmola ao primeiro pobre que aparece e, tendo dado aquela esmola e dito: "Encomenda-me às almas santas
do Purgatório", fez as pazes com a consciência
e não escuta mais nada.)
Enquanto isso, eu penso e digo: aquela garota, se já não está, estará perdida certamente em
breve. Sim, mas que me importa isso? Eu, agora, tornei-me sábio, e nessas coisas não devo
pensar nem um pouco, nem nada. -"Pensar
em mim!"- este, meu novo lema. Custei a fazê-lo guiar todos os atos desta minha nova vida, vamos chamá-la assim. Mas, como Deus
queira, não se fazendo nada... Bata. Se eu agora, a título de exemplo, paro embaixo da janela
de uma casa em que saiba que há gente chorando, devo imediatamente ver naquela janela
a minha imagem perdida, desaparecida, que,
fazendo-se à janela, tem a obrigação expressa
de gritar-me lá de cima, pendendo um pouco a
cabeça e apontando o indicador de uma mão
para o próprio peito: "E eu?". Assim.
Sempre: "E eu?" em todas as ocasiões. Porque essa é a base da verdadeira sabedoria.
Já quando eu era louco...
"A Esmola", capítulo inicial de "Quando Eu Era Louco...",
do livro "O Velho Deus", primeiro volume de "Novelas para um Ano", da editora Berlendis & Vertecchia
O italiano Luigi Pirandello (1867-1936), conhecido como dramaturgo, tem dois volumes de prosa lançados este mês no Brasil
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