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DRAUZIO VARELLA
Olha o aviãozinho, meu filho
Antigamente uma criança rechonchuda era admirada como saudável. Havia razão:
num mundo sem antibióticos
nem saneamento, assolado por
epidemias de fome, a criança
mais gordinha levava vantagem
na seleção natural. A necessidade
de manter a prole superalimentada nos períodos de fartura deve
ter sido tão essencial à sobrevivência da espécie humana que,
ainda hoje, as mães enlouquecem
quando os filhinhos fazem fita na
hora do almoço.
A disponibilidade atual de alimentos altamente calóricos, entretanto, provocou um aumento
explosivo nos casos de obesidade
infantil em diversos países do
mundo, entre os quais o nosso. A
prevalência elevada de crianças
obesas não ocorreu apenas nas
sociedades industrializadas ou
nas classes privilegiadas dos países em desenvolvimento. Graças
ao acesso generalizado à alimentação de conteúdo energético alto
e à falta de espaço para práticas
esportivas, os habitantes mais pobres das grandes cidades são especialmente vulneráveis ao ganho
excessivo de peso.
A pediatria moderna considera
a obesidade infantil uma doença
de consequências potencialmente
devastadoras que afeta diversos
sistemas do organismo. Estudos
demonstram que, em analogia
aos adultos, o excesso de peso das
crianças está associado a diabetes, hipertensão, puberdade precoce, colesterol e triglicérides elevados, inflamações crônicas, aumento na produção de insulina,
tendência à coagulação acelerada do sangue e alterações nas paredes internas das artérias que
mais tarde levarão aos ataques
cardíacos e aos derrames cerebrais.
Desde as clássicas autópsias
realizadas por patologistas americanos durante a guerra do Vietnã, sabemos que jovens obesos
apresentam em suas artérias placas de arteriosclerose semelhantes
àquelas que provocam doenças
cardiovasculares nas pessoas
mais velhas. Um estudo conduzido na Inglaterra recentemente
mostrou que ter sido obeso na infância está associado à duplicação do risco de infarto do miocárdio aos 57 anos de idade.
Além dessas complicações tardias, estão ligados à obesidade infantil transtornos renais, musculares, ósseos, articulares, hepáticos, respiratórios (asma, apnéia
do sono e intolerância aos exercícios físicos vigorosos) e complicações neurológicas. Distúrbios psicossociais consequentes à auto-estima rebaixada, à deformação da
auto-imagem e à visão preconceituosa da sociedade, que estigmatiza a criança obesa, podem levar
a quadros depressivos na adolescência, abuso de drogas e transtornos de ansiedade.
A predisposição genética é tradicionalmente invocada para explicar porque algumas crianças
engordam enquanto outras podem comer à vontade sem ganhar
peso. Mas foi apenas em 1997 que
se identificou com segurança
uma mutação genética responsável pela excessiva obesidade de
duas crianças paquistanesas, filhas de um casal consanguíneo.
Ambas crianças apresentavam
uma mutação no gene responsável por codificar a leptina, um
hormônio produzido pelo tecido
gorduroso que tem a propriedade
de ativar o centro da saciedade e
bloquear a fome.
Desde então, foram identificadas mais cinco mutações genéticas causadoras de obesidade humana. Alterações em genes isolados, no entanto, podem ser responsabilizadas apenas por uma
pequena parcela dos casos. Na
verdade, o que chamamos de predisposição à obesidade envolve
interações complexas de uma
constelação de pelo menos 250 genes relacionados com o controle
do equilíbrio energético do corpo
humano.
A função desses genes é orquestrar uma cascata de processos fisiológicos destinados a manter
um equilíbrio delicadamente
ajustado entre o número de calorias ingeridas e aquelas que serão
gastas no dia-a-dia. Para termos
uma idéia da precisão desses mecanismos, vale lembrar que um
excesso diário de apenas 120 kcal
(um copo de refrigerante comum), produziria em 10 anos um
acréscimo de peso igual a 50 quilos.
A epidemia de obesidade infantil encontrada mesmo em populações geneticamente estáveis, no
entanto, sugere que fatores pré-natais estejam envolvidos em sua
gênese. Em 1998, Whitaker e Dietz
levantaram a extraordinária hipótese de que a superalimentação
da mãe durante a gravidez aumenta a transferência de nutrientes através da placenta, induzindo alterações permanentes no
apetite, no sistema neuroendócrino e no balanço energético do feto.
Estudos observacionais reforçam essa hipótese, de fato. Parece
existir relação direta entre obesidade materna, peso ao nascer e
obesidade no decorrer da vida.
Ratas que desenvolveram obesidade por excesso de calorias ingeridas durante a gravidez dão à
luz filhotes mais gordos do que os
nascidos de ratas geneticamente
idênticas a elas, mas alimentadas
com parcimônia para não se tornarem obesas.
As implicações dessas idéias estão longe de ser desprezíveis. Elas
indicam que a epidemia de obesidade pode ser acelerada de uma
geração para a seguinte pelo simples aumento da ingestão de calorias durante o período gestacional, independentemente de fatores genéticos ou influência do
meio encontrado depois do nascimento.
Para aumentar a complexidade
desse tema, um estudo holandês
demonstrou que a subnutrição
em certos períodos críticos do desenvolvimento fetal também pode
induzir alterações fisiológicas
permanentes no futuro bebê, que
conduzirão ao excesso de peso depois do nascimento. Essa constatação pode colocar em risco de
obesidade mesmo as crianças dos
países mais pobres e deixa claro
que a prevenção da obesidade deve começar antes mesmo da concepção.
No próximo número desta coluna, será discutida a influência do
estilo de vida das crianças na gênese da atual epidemia de obesidade infantil.
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