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São Paulo, domingo, 07 de setembro de 2003

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MÔNICA BERGAMO

Bel Pedrosa/Folha Imagem
O jornalista Joel Silveira, 85, autor da reportagem "Grã-finos em São Paulo", de 1943, que agora chega ao livro


O dia em que a sociedade paulistana tremeu

Fifi, Lili e Lelé dividem seu dia entre acordar tarde, almoçar em bloco, jogar pife-pafe, comprar a revista "Sombra", tomar chá na livraria Jaraguá, jantar no Papote e falar das amigas. Os rapazes se vestem muito bem e telefonam. À noite, vão a festas nos palacetes da Paulista.
 
Estamos em São Paulo na década de 40, mais precisamente em 1943, quando a sociedade paulistana vive sua fase mais efervescente, enriquecida pelo dinheiro das fábricas, por sua vez em plena atividade por conta da guerra. Os grã-finos, para usar um termo da época, são formados por industriais, famílias quatrocentonas, arrivistas.
 
Tudo vai bem. Até que entra em cena o repórter Joel Silveira, então com 26 anos. Nascido em Lagarto (SE) e baseado no Rio, ele vem a São Paulo com uma missão: mostrar sem dó nas páginas da prestigiosa "Diretrizes", dirigida por Samuel Wainer (1912-1980), como vivem e o que pensam os endinheirados.
 
Veio, viu, contou e foi embora correndo, deixando o rastro de uma bomba atômica no seio do high society piratininga. De quebra, ajudou a criar um gênero que depois daria no chamado novo jornalismo, as grandes reportagens escritas com requinte de bons romances. A história está em "A Milésima-Segunda Noite da Avenida Paulista", que chega às livrarias esta semana.
 
Silveira, 85, hoje vivendo no Rio de Janeiro, lembra da história com um sorriso. Batizada de "Grã-Finos em São Paulo", não poupou ninguém, nenhum dos "quatro grupos", como ele os dividiu: os quatrocentões, a "reserva" (os atuais ascendentes), o "estribo" (os alpinistas sociais) e o "quarto grupo" (intelectuais).
 
Os primeiros são "criaturas repletas de antepassados, aqueles senhores heróicos e sem muitos escrúpulos que rasgaram as matas de São Paulo. (...) Morreram todos, (...) mas deixaram seus descendentes um presente régio: (...) um cartão de visitas, espécie de permanente com o qual um Prado, um Leme e um Alves de Lima podem entrar em tudo sem pagar nada".
 
Acostumada a ser tratada com condescendência e devoção pelo colunismo social, assinado por nomes como "Jerry" e "Blim", a elite se revoltou. Leu a reportagem avidamente -foi o primeiro número da revista a tirar duas edições- e se revoltou. Um grupo chegou a tomar o saguão do hotel em que Joel Silveira se hospedava, no Centro, e o ameaçou fisicamente. Não fosse a intervenção do pessoal do Centro Acadêmico 11 de Agosto, e o final não seria feliz.
 
Literalmente expulso, Silveira voltou ao Rio e ganhou fama nacional. O próprio presidente Getúlio Vargas (1883-1954) lia e relia para os amigos a reportagem, às gargalhadas. O caudilho gaúcho se considerava "esnobado" pela elite paulistana.
 
A coluna revisitou quatro dos lugares mais citados pelo texto como os "points" da época: dois viraram estacionamento, um foi demolido e o outro mudou de função. Tentou ainda localizar personagens citados, mas quase ninguém sobreviveu.
 
A maioria dá hoje nome a ruas e edifícios, como Iolanda Penteado e Irene Crespi. Quem não está no livro mas poderia lembrar do incidente não faz questão. É o caso de Filomena Matarazzo Suplicy, 94: "Esta revista nunca entrou em nossa casa".

O AUTOR

'A mundanidade não existe mais'

Hoje recuperando-se em seu apartamento de Copacabana de uma catarata que o impede de ler vários jornais e revistas por dia, como gosta, Joel Silveira se vira com a TV. Assiste (ouve) todos os telejornais nacionais, inclusive os dos canais pagos.
Ao voltar ao Rio naquele ano de 1943, o repórter virou celebridade. Logo, o maior empresário de comunicação de então, Assis Chateaubriand (1892-1968), o mandou chamar. Contratado, Silveira foi enviado para cobrir a Segunda Guerra, quando ouviu a famosa frase de Chatô: "O senhor não me morra, senhor Silveira! Não me morra! Repórter é para mandar notícia!"
Voltou vivo e nunca mais parou. Casado há 60 anos, com dois filhos, dois netos e dois bisnetos, fala com lucidez de qualquer assunto da atualidade.
 
Folha - O sr. é um mito vivo do jornalismo.
Joel Silveira -
"Você", por favor, não me deixe mais velho. Posso ser mito vivo, mas já estou tombado.

Folha - De quem foi a idéia da reportagem "Grã-finos em São Paulo"?
Silveira -
Minha. Nasceu de uma conversa com o Di Cavalcanti (1897-1976). Quando a guerra explodiu na Europa, ele morava lá e teve de sair, veio para o Brasil. E tentou ser aceito pela sociedade paulistana, naquele tempo muito fechada, muito restrita. Não foi. Um dia, me contou as coisas da grã-finagem, eu disse, poxa, isso até que dá uma reportagem. E deu.

Folha - Você esperava aquela reação?
Silveira -
Não. Um grupo de grã-finos me cercou no hotel e não queria me deixar sair para ir ao aeroporto. Mas o pessoal do Centro 11 de Agosto, com quem eu me dava, foi me ajudar. Iam liderados por um jovem de nome Jânio Quadros (1917-1992), que era quartanista de Direito na São Francisco. Eles me levaram ao aeroporto e garantiram minha fuga, só deixando o local quando o avião subiu. Se não fosse assim, teria sido aquela surra (risos)...

Folha - Acompanha as colunas sociais hoje?
Silveira -
Não há mais colunas sociais como o Ibrahim Sued (1924-1995) fazia. Hoje são colunas informativas, ninguém se interessa mais em saber que Fulano casou com Sicrana, que foi visto bebendo não sei onde, isso acabou. São colunas realmente informativas, que chegam inclusive a dar furos. A mundanidade não existe mais, acabou.

Folha - Para não fugir ao clichê: qual reportagem o sr. gostaria de fazer hoje?
Silveira -
Eu procuraria o Saddam Hussein. Fazer uma entrevista com ele onde estivesse. Seria a grande entrevista de hoje, não tem dúvida, não tem outra.

Folha - Cobriria a Guerra do Iraque?
Silveira -
Olhe, não sei. Cobri a Segunda Guerra, que foi uma guerra justa, afinal de contas Hitler tinha de ser derrubado de qualquer maneira, era uma perversão política, moral. Mas essa guerra do Iraque foi uma guerra sem sentido. os EUA poderiam ter resolvido o caso de outra maneira, com embargo, tentando revolução interna...


@ - bergamo@folhasp.com.br

SÉRGIO DÁVILA (INTERINO)
COM CLEO GUIMARÃES E ALVARO LEME



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