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MARCELO COELHO
A vingança do circo contra o cinema
Um grupo de pessoas rindo,
afirmou o filósofo Theodor
Adorno, já não passa de uma paródia, de uma caricatura da humanidade. Escrita por volta de
1945, a frase era uma reação tanto à barbárie nazista quanto aos
horrores da indústria do entretenimento, com a qual o teórico
marxista era forçado a tomar
contato em seu exílio norte-americano.
"Os Palhaços", semidocumentário de Federico Fellini rodado
na década de 70, só agora estreou
em São Paulo. No começo do filme, aquela idéia de Adorno parece ter sido posta de cabeça para
baixo. Fellini lembra que, quando
criança, tinha muito medo dos
palhaços de circo: impressionava-o a semelhança que tinham com
algumas personagens reais, os
loucos, os tarados, os mendigos de
sua cidade natal.
Aqueles tipos ridículos e desgraçados eliminavam qualquer possibilidade de achar divertido um
espetáculo de circo. As primeiras
cenas do filme reconstituem um
picadeiro paupérrimo, em que
truques banais e figuras grotescas
se alternam diante dos olhos assustados de um menino provinciano.
Reconstituem também algumas
imagens da cidade de Rimini, que
mais tarde viriam a ser imortalizadas em "Amarcord", a obra-prima do diretor. Fellini recria
com realismo o ambiente, os lugares, os personagens daquela pequena cidade italiana dos anos
30, enquanto, no circo, as cenas
mais implausíveis e as enganações mais baratas se sucedem pateticamente.
No circo, um falso Tarzã agarra
bufando um canhão de papel cinzento, enquanto "lá fora", no filme, uma cidade real, com sua estação de trem, seus cafés e calçadas é mostrada de modo persuasivo para o espectador. Mas é claro que a Rimini de 1930 não existe
mais e que o filme nos engana
com seu realismo.
À primeira vista, assim, toda a
nostalgia de Fellini com relação
ao mundo do circo seria um tanto
contraditória: lamentando a
morte das formas ingênuas de espetáculo, "Os Palhaços" estaria
também contribuindo para enterrá-las. O cinema, afinal, constrói ilusões muito melhores, muito mais fantásticas e convincentes. Se há algo de comovente no
circo, é porque com o tempo
aprendemos a perceber a miséria
de seus prodígios.
O bonito de "Os Palhaços", entretanto, é que o filme inteiro vai
minando essa conclusão. Fellini
transforma o seu documentário
numa vingança do circo contra o
cinema, denunciando todos os
truques "realistas" da linguagem
cinematográfica.
O filme se apresenta como um
documentário, com o próprio Fellini entrevistando palhaços e especialistas na história do circo.
No estilo que, hoje em dia, nos
acostumamos a ver nos documentários de Eduardo Coutinho,
a equipe de filmagem do diretor
aparece explicitamente em cena,
insistindo o tempo todo em que,
naquele filme, não há ilusão nenhuma, tudo é real, e, portanto, o
mundo das ilusões "autênticas"
será ainda e sempre o circo.
Mas isso também é falso. Numa
outra reviravolta, Fellini deixa
entrever que aquela equipe de filmagem, o cameraman, o sonoplasta, até a secretária da produção, nenhum deles é de fato profissional do ramo. Encarregada
de datilografar um texto, a secretária rasga o papel; um ajudante
gordo dá topadas em todo lugar;
o sonoplasta tem uma cara esquisitíssima; as próprias lentes da câmera, filmadas de perto por Fellini, mostram-se feitas de celofane...
Sim, aquilo tudo é uma vasta
palhaçada -e o espectador, que
se comovia diante da primária e
pungente farsa dos cirquinhos de
província, não mais capazes de
enganar ninguém, termina vendo
que foi enganado o tempo todo
por artistas de circo "reais".
O que era uma elegia sobre o
circo se transforma, então, em
apoteose, num daqueles finais
triunfantes que Fellini gosta de
fazer. Mas um momento. O filme
ainda não acabou. Uma vitória
do circo sobre o cinema seria, ela
própria, falsa. As deslumbrantes
imagens de um cortejo de palhaços, a princípio fúnebre e, depois,
carnavalesco, vão ficando mais
frenéticas a cada minuto. A cena
se prolonga, vai dando vertigem,
os clowns vão caindo de cansaço.
Se o filme começava mostrando
cenas pungentes, pobres e tristíssimas de um circo mambembe e
termina num esplendor de cores,
roupas bizarras, marchas frenéticas e serpentinas, nem por isso se
deixa de falar da mesma realidade, com a mesma angústia.
Quando vemos aqueles palhaços do início trocando marteladas
na cabeça, tentando exercer o ofício de carpinteiros, barbeiros e cozinheiros, entregues à mais convulsiva incompetência, é sem dúvida a vida real -o cotidiano do
trabalho manual e da violência
física- que está sendo retratada
no circo.
O cinema mais lírico, "poético"
e "mágico" costuma ocultar com
facilidade coisas desse tipo. Mas
Fellini escapa das armadilhas do
cinema "de arte". Pois as cenas
mais exaltadas e fantasiosas do
final do filme são também marcadas pelo ritmo cansativo, mecânico e escravizante daquelas atividades que os palhaços parodiam.
Trabalho e sonho se misturam,
miséria e magia se alimentam e se
destroem mutuamente.
"Os Palhaços" termina como
que pelo esgotamento dos próprios recursos de ilusão e de ironia. E só então, quando ficção e
realidade parecem ter rodopiado
até morrer, uma perseguindo a
outra, o filme subitamente se
aquieta e a câmera passeia pela
arquibancada escura e vazia.
Nesse momento, em que sono,
cansaço e noite se abatem sobre a
tela, os fantasmas coloridos e irreais do circo podem finalmente
aparecer. Só existem, parece dizer
Fellini, quando fechamos os
olhos.
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