|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
GASTRONOMIA
Chega de moda e modinha!
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
-Padre, dai-me a vossa
benção porque pequei
por pensamentos, palavras e
obras. Pequei ao passar a vida bebendo de tudo sem me interessar
pelos terroirs, pelas cepas, pela
colheita, pelo carvalho, pelo tanino, pelas doçuras do vinho. Confesso, sempre tive medo do assunto que era complexo demais, e
principalmente dos gastos com as
garrafas e com os livros. Mas paguei língua, sempre pago, caçoei
dos esnobes do vinho e caí na deles como um pato, só que nadando no álcool.
Pequei, padre, por ter desdenhado um mundo fascinante, e já
comecei a estudar nos livros e nas
garrafas. E como é interessante o
despertar de um conhecimento,
primeiro parece uma língua impossível, um chinês dialetal que
vai se abrindo, como se abre um
vinho depois da garrafa destampada. O quebra-cabeças começa a
tomar forma, um programão para a terceira idade, beber até morrer... mas distinguindo as zurrapas.
Como corolário de minha ignorância, pequei, padre, ao aceitar
servir Prosecco em todas as festas
do mundo, já há uns dez anos, se
não me engano. Como se todos
nós tivéssemos nascido no Vêneto, na praça dos pombos...
Prometo, padre, de agora em
diante não vou me esquecer dos
espumantes nacionais, das Cavascatalãs, um Crémant d'Alsace, ou
um bom Prosecco, é claro, se o
cliente gosta, nada contra, há Proseccos ótimos, frescos, mas de
carneirinho, carneirão, moda,
modinha, chega!
Padre, ainda tem muita coisa
como intenção, acho que fica para
outra vez, de intenções está o inferno cheio, eu sei, mas não vou
mais a restaurantes de comida
pretensiosa e preços altos, vou
cortar da minha dieta as frutas
que andam sem gosto e ruins demais, acho que ninguém morre
semfruta, [ ] vou também fazer greve
contra perus e pernis e todo bicho
enorme, gigantesco e disforme
como os morangos, porque acho
que aí deve ter coisa.
É preciso estar atento e forte, padre, vou comprar o livro das letras
do Caetano e, por falar em livros,
a intenção mais férrea e importante é parar de comprar livros da
especialidade pela internet como
uma obsessão.
Comprar só os estritamente necessários, deixar de lado os que
começam com a descoberta do
fogo e a origem da salsinha para
chegar no Adrià. E muito livro
cheio de frescura, de arranjinhos
inúteis...
Ah, padre, estou falando, acusando os outros, mas já fiz muita
comida só bonita, com a cebolinha espetada e a torrada também,
consertei o rabo do camarão para
a direita, arranjei os sushis em filas orientais, usei e abusei do tomate seco e da erva cidreira. Mas,
padre, prometo voltar às origens e
só servir coisa gostosa, que brasileiro aprecia, e desconfiar de excessos de criatividade. Aprender a
fazer um bom cuscuz, vou tentar,
acho meio pesadão, mas vou tentar, e onde anda a insubstituível
empadinha?
Prometo oferecer muito as comidas deserdadas em geral, sardinha, bucho, fígado, marreco gordo, língua e desdenhar levemente
o peru e o filet mignon, e o filé de
linguado e salmão.
É isto, senhor padre, quero cozinhar e escrever de tudo que seja
verdadeiramente bom, procurar
o que há de melhor, conversar
com bons grandes produtores,
mas principalmente com os pequenos, tentar descobrir o que vai
por trás dos excessos da moda, a
comida também é política, o senhor não acha?
Padre, conhece o La Coruña,
agora com a chef Sandra Picos,
galega linda e esperta, cheia de
garra que faz comida com cara de
comida, autêntica, saborosa? Pois
é, o que quero mesmo em 2004 é
ser um híbrido de Sandra Picos e
Saul Galvão, mas sem os bigodes,
se possível, senhor padre. Rezar
um terço de penitência? Amém.
ninahort@uol.com.br
Texto Anterior: "Peças Precoces": Despretensões de Roberto Athayde elucidam seu maior sucesso Próximo Texto: Mundo gourmet: Lola Bistrô traz amostra da nova geração de chefs Índice
|