São Paulo, quinta-feira, 08 de janeiro de 2004

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GASTRONOMIA

Chega de moda e modinha!

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

-Padre, dai-me a vossa benção porque pequei por pensamentos, palavras e obras. Pequei ao passar a vida bebendo de tudo sem me interessar pelos terroirs, pelas cepas, pela colheita, pelo carvalho, pelo tanino, pelas doçuras do vinho. Confesso, sempre tive medo do assunto que era complexo demais, e principalmente dos gastos com as garrafas e com os livros. Mas paguei língua, sempre pago, caçoei dos esnobes do vinho e caí na deles como um pato, só que nadando no álcool.
Pequei, padre, por ter desdenhado um mundo fascinante, e já comecei a estudar nos livros e nas garrafas. E como é interessante o despertar de um conhecimento, primeiro parece uma língua impossível, um chinês dialetal que vai se abrindo, como se abre um vinho depois da garrafa destampada. O quebra-cabeças começa a tomar forma, um programão para a terceira idade, beber até morrer... mas distinguindo as zurrapas.
Como corolário de minha ignorância, pequei, padre, ao aceitar servir Prosecco em todas as festas do mundo, já há uns dez anos, se não me engano. Como se todos nós tivéssemos nascido no Vêneto, na praça dos pombos...
Prometo, padre, de agora em diante não vou me esquecer dos espumantes nacionais, das Cavascatalãs, um Crémant d'Alsace, ou um bom Prosecco, é claro, se o cliente gosta, nada contra, há Proseccos ótimos, frescos, mas de carneirinho, carneirão, moda, modinha, chega!
Padre, ainda tem muita coisa como intenção, acho que fica para outra vez, de intenções está o inferno cheio, eu sei, mas não vou mais a restaurantes de comida pretensiosa e preços altos, vou cortar da minha dieta as frutas que andam sem gosto e ruins demais, acho que ninguém morre semfruta, [ ] vou também fazer greve contra perus e pernis e todo bicho enorme, gigantesco e disforme como os morangos, porque acho que aí deve ter coisa.
É preciso estar atento e forte, padre, vou comprar o livro das letras do Caetano e, por falar em livros, a intenção mais férrea e importante é parar de comprar livros da especialidade pela internet como uma obsessão.
Comprar só os estritamente necessários, deixar de lado os que começam com a descoberta do fogo e a origem da salsinha para chegar no Adrià. E muito livro cheio de frescura, de arranjinhos inúteis...
Ah, padre, estou falando, acusando os outros, mas já fiz muita comida só bonita, com a cebolinha espetada e a torrada também, consertei o rabo do camarão para a direita, arranjei os sushis em filas orientais, usei e abusei do tomate seco e da erva cidreira. Mas, padre, prometo voltar às origens e só servir coisa gostosa, que brasileiro aprecia, e desconfiar de excessos de criatividade. Aprender a fazer um bom cuscuz, vou tentar, acho meio pesadão, mas vou tentar, e onde anda a insubstituível empadinha?
Prometo oferecer muito as comidas deserdadas em geral, sardinha, bucho, fígado, marreco gordo, língua e desdenhar levemente o peru e o filet mignon, e o filé de linguado e salmão.
É isto, senhor padre, quero cozinhar e escrever de tudo que seja verdadeiramente bom, procurar o que há de melhor, conversar com bons grandes produtores, mas principalmente com os pequenos, tentar descobrir o que vai por trás dos excessos da moda, a comida também é política, o senhor não acha?
Padre, conhece o La Coruña, agora com a chef Sandra Picos, galega linda e esperta, cheia de garra que faz comida com cara de comida, autêntica, saborosa? Pois é, o que quero mesmo em 2004 é ser um híbrido de Sandra Picos e Saul Galvão, mas sem os bigodes, se possível, senhor padre. Rezar um terço de penitência? Amém.

ninahort@uol.com.br


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