São Paulo, sexta, 8 de janeiro de 1999

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SHOW - CRÍTICA
Chico volta sem casa em "As Cidades'

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
enviado especial ao Rio

Um Chico Buarque sem casa estreou, anteontem, no Rio, seu novo show, "As Cidades". É essa a tônica que parece orientar um tortuoso roteiro de 29 músicas.
De início, Chico parece dispor as canções aleatoriamente, partindo de "Paratodos" (93) até chegar, já no segundo bis, a "João e Maria" (78). Tudo parece apenas casual, e as várias canções novas interpostas no vaivém não raro levam o show ao arrastado, ao minguado.
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Roteiro espartano
Qualquer casualidade, no entanto, é ilusória. Há, sim, um roteiro espartano, embora as pistas surjam quebradiças, rarefeitas numa fuga constante à empatia. Eis aí.
"Paratodos" faz, de cara, o manifesto da velha casa. Brasileira xiita, ressurge em arranjo de viagem, aquático, um passeio náufrago pelo Brasil.
O show começa imperioso, com arranjo para lá de complexo. Não haverá outro tão forte na sequência, o clímax ficou na largada -"As Cidades" não foi feito para que se sinta em casa.
Momentos de dispersão -entre eles, "A Noiva da Cidade" (76), anunciando a moça que vai chegar- desaguam na segunda pista, em "A Volta do Malandro" (85) e "Homenagem ao Malandro" (78).
A mais recente vem primeiro, rememorando a dialética da malandragem do "barão da ralé". Em seguida, o sarcasmo do tema da "Ópera do Malandro" carrega as tintas políticas (logo, como quer Chico, anacrônicas).
Aquele malandro descrito é sujeito fora de moda, já que a malandragem se liquefez no todo da meleca cultural dos 90. O antigo malandro, Chico Buarque, concede à canção política -e está fora de moda.
O que cai em seguida é um longo segmento de novas canções, do sopro frágil e mortiço de "A Ostra e o Vento" às dores sussurradas de "Cecília". Não haverá grandes hits; o desprazer de Chico será, necessariamente, transcrito a um público já disperso.
A moça chegou. Atado a "Cecília" e "Aquela Mulher" (85, só gravada por ele agora), vem o colar feminino. Entrelaça canções feitas como que por mulheres, cantando no feminino "Sob Medida", "O Meu Amor" e "Terezinha", as três do eixo 77-79 de sua obra.
"Terezinha" aparece como segundo grande lance do show. Ao cantar "como se seu corpo fosse a minha casa", Chico desvela o que lhe resta da perda de referências -políticas, sociais, sentimentais-, do exílio da urbanidade: o corpo como última morada.
A nova "Injuriado" marca a passagem de tempo. Foi-se o viço de alternar personas, de lamber a alma feminina, de chorar o amor no masculino.
"Injuriado" é canção sem sexo. Preencha as lacunas de "você" de acordo com seu gosto sexual, tudo fará sentido. "Quem Te Viu, Quem Te Vê" (67), na sequência, não parece mais que "ciranda, cirandinha".
A decadência territorial é sublinhada em "Iracema Voou". Iracema "tem saudade do Ceará, mas não muita". Como Chico, que tem vontade de cantar e fazer música -mas não muita. "A cidade não mora mais em mim", decifra no rústico enlevo de "Assentamento". É o decolar para lugar algum, coroado por "Cotidiano" (71).
O dia-a-dia do corpo não inibirá, na sequência, mais um esgar do velho Chico. "Bancarrota Blues" tematiza a falência em regra, que bem pode ser a do fim dos 90, a do Chico "inimigo" de política, a do fim da história. Em meio à canção, ele pára para uma homenagem "de coração" ao Brasil e a seus músicos, e então volta à canção, sorridente de sarcasmo: "Mas posso vender/ Quanto vai pagar?".
Segue, claro, a nova "Xote de Navegação", fado ancestral que é sua declaração de desistência diante da bancarrota. Aí -surpresa- um novo e surpreendente arranjo de "Construção" (71) rejuvenesce aquele antigo clamor à juventude.
A desordenação semântica que constrói a velha letra revela-se a própria natureza de "As Cidades". "Morreu na contramão atrapalhando o público", vai ele lá pelas tantas. É o que Chico vem fazendo no passeio público/náufrago.
O show vinha quase sempre apático, frio; podia acabar agora, não ia fazer diferença (tanto que "Carioca", a seguinte, é a mais chata das canções). Andar na contramão já não atrapalha o sistema -atrapalha o próprio público. Já não há comunhão, Chico Buarque foi expulso da própria casa. Ou se cansou dela e foi ao exílio. Ou ambos.
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Show: As Cidades Artista: Chico Buarque Onde: Canecão (av. Wenceslau Brás, 215, Botafogo, zona sul, Rio de Janeiro, tel. 021/ 543-1241) Quando: quintas e domingos, às 21h30, sextas e sábados, às 22h30; até 7 de fevereiro
Quanto: de R$ 20 a R$ 40




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