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SHOW - CRÍTICA
Chico volta sem casa em "As Cidades'
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
enviado especial ao Rio
Um Chico Buarque sem casa estreou, anteontem, no Rio, seu novo
show, "As Cidades". É essa a tônica
que parece orientar um tortuoso
roteiro de 29 músicas.
De início, Chico parece dispor as
canções aleatoriamente, partindo
de "Paratodos" (93) até chegar, já
no segundo bis, a "João e Maria"
(78). Tudo parece apenas casual, e
as várias canções novas interpostas no vaivém não raro levam o
show ao arrastado, ao minguado.
²
Roteiro espartano
Qualquer casualidade, no entanto, é ilusória. Há, sim, um roteiro
espartano, embora as pistas surjam quebradiças, rarefeitas numa
fuga constante à empatia. Eis aí.
"Paratodos" faz, de cara, o manifesto da velha casa. Brasileira xiita,
ressurge em arranjo de viagem,
aquático, um passeio náufrago pelo Brasil.
O show começa imperioso, com
arranjo para lá de complexo. Não
haverá outro tão forte na sequência, o clímax ficou na largada
-"As Cidades" não foi feito para
que se sinta em casa.
Momentos de dispersão -entre
eles, "A Noiva da Cidade" (76),
anunciando a moça que vai chegar- desaguam na segunda pista,
em "A Volta do Malandro" (85) e
"Homenagem ao Malandro" (78).
A mais recente vem primeiro, rememorando a dialética da malandragem do "barão da ralé". Em seguida, o sarcasmo do tema da
"Ópera do Malandro" carrega as
tintas políticas (logo, como quer
Chico, anacrônicas).
Aquele malandro descrito é sujeito fora de moda, já que a malandragem se liquefez no todo da meleca cultural dos 90. O antigo malandro, Chico Buarque, concede à
canção política -e está fora de
moda.
O que cai em seguida é um longo
segmento de novas canções, do sopro frágil e mortiço de "A Ostra e o
Vento" às dores sussurradas de
"Cecília". Não haverá grandes hits;
o desprazer de Chico será, necessariamente, transcrito a um público
já disperso.
A moça chegou. Atado a "Cecília" e "Aquela Mulher" (85, só gravada por ele agora), vem o colar feminino. Entrelaça canções feitas
como que por mulheres, cantando
no feminino "Sob Medida", "O
Meu Amor" e "Terezinha", as três
do eixo 77-79 de sua obra.
"Terezinha" aparece como segundo grande lance do show. Ao
cantar "como se seu corpo fosse a
minha casa", Chico desvela o que
lhe resta da perda de referências
-políticas, sociais, sentimentais-, do exílio da urbanidade: o
corpo como última morada.
A nova "Injuriado" marca a passagem de tempo. Foi-se o viço de
alternar personas, de lamber a alma feminina, de chorar o amor no
masculino.
"Injuriado" é canção sem sexo.
Preencha as lacunas de "você" de
acordo com seu gosto sexual, tudo
fará sentido. "Quem Te Viu, Quem
Te Vê" (67), na sequência, não parece mais que "ciranda, cirandinha".
A decadência territorial é sublinhada em "Iracema Voou". Iracema "tem saudade do Ceará, mas
não muita". Como Chico, que tem
vontade de cantar e fazer música
-mas não muita. "A cidade não
mora mais em mim", decifra no
rústico enlevo de "Assentamento".
É o decolar para lugar algum, coroado por "Cotidiano" (71).
O dia-a-dia do corpo não inibirá,
na sequência, mais um esgar do velho Chico. "Bancarrota Blues" tematiza a falência em regra, que
bem pode ser a do fim dos 90, a do
Chico "inimigo" de política, a do
fim da história. Em meio à canção,
ele pára para uma homenagem "de
coração" ao Brasil e a seus músicos, e então volta à canção, sorridente de sarcasmo: "Mas posso
vender/ Quanto vai pagar?".
Segue, claro, a nova "Xote de Navegação", fado ancestral que é sua
declaração de desistência diante da
bancarrota. Aí -surpresa- um
novo e surpreendente arranjo de
"Construção" (71) rejuvenesce
aquele antigo clamor à juventude.
A desordenação semântica que
constrói a velha letra revela-se a
própria natureza de "As Cidades".
"Morreu na contramão atrapalhando o público", vai ele lá pelas
tantas. É o que Chico vem fazendo
no passeio público/náufrago.
O show vinha quase sempre apático, frio; podia acabar agora, não
ia fazer diferença (tanto que "Carioca", a seguinte, é a mais chata
das canções). Andar na contramão
já não atrapalha o sistema -atrapalha o próprio público. Já não há
comunhão, Chico Buarque foi expulso da própria casa. Ou se cansou dela e foi ao exílio. Ou ambos.
²
Show: As Cidades
Artista: Chico Buarque
Onde: Canecão (av. Wenceslau Brás, 215,
Botafogo, zona sul, Rio de Janeiro, tel. 021/
543-1241)
Quando: quintas e domingos, às 21h30,
sextas e sábados, às 22h30; até 7 de
fevereiro
Quanto: de R$ 20 a R$ 40
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