São Paulo, sexta, 8 de janeiro de 1999

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Schnittke, o visionário


Um dos mais importantes compositores contemporâneos, morto no ano passado, o músico tem a integral de seus quartetos lançada em CD duplo, interpretada pelo grupo americano Kronos Quartet


ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

Nas fotografias, quando não está de olhos fechados, ele parece estar sempre observando algum ponto atrás da câmera, para além do rosto do fotógrafo e, por extensão, para além do nosso rosto também: inteiramente voltado para dentro, ou abandonando o mundo ao redor. Pode-se dizer o mesmo de sua música: voltada para dentro, ou muito além de nós, em busca de um sentido raro.
Uma das marcas musicais do nosso tempo, sem rival ou sucessor, a arte de Alfred Schnittke constitui virtualmente um cânone próprio, que agora se fecha, com a morte recente do autor, em 3 de agosto do ano passado, vítima de derrame cerebral.
Nascido em Engels, na Rússia, em 1934, de pai letão e mãe alemã, Alfred Schnittke passou parte da adolescência em Viena.
Estudou composição em Moscou e tornou-se informalmente discípulo de Schostakovich; já perto dos 30 anos, descobriu o serialismo e as utopias humanitárias de Luigi Nono. A essa mistura de tradições se somariam, mais tarde, os interesses pela cultura chinesa, a ioga, a cabala e o ocultismo, além da religião católica (de sua mãe), praticada em contraponto com o judaísmo (do pai) e a igreja ortodoxa russa.
Dono de um estilo em que se combinam, também, as vertentes mais contraditórias, coube a ele a alquimia de traduzir tanta diversidade numa simplicidade elementar. Sua música é uma arte das mil maneiras, uma enciclopédia viva de referências e modos do passado e do presente. Mas a maneira, aqui, se traduz de imediato em estilo; estilo em verdade; e verdade em emoção.
As forças latentes, ou subjacentes da música se revelam no contraste entre estilos. A composição se torna, no limite, uma arte visionária, capaz de descrever verdadeiras geografias musicais tão só para ultrapassá-las, ou abstrair-se delas.
Todos os caminhos levam ao centro, mas não há melhor ponto de entrada na sua obra do que o "Concerto Grosso nē 1" (espetacularmente tocado por Gidon Kremer, Tatiana Grindenko e a Chamber Orchestra of Europe num CD da Deutsche Grammophon).
Insatisfeito com a música serial, incapaz de se livrar de seus "ritos adolescentes de auto-negação", Schnittke vinha ensaiando, desde fins dos anos 60, uma outra forma de composição, em que tonalidade e atonalismo podem se combinar de forma análoga aos temas contrastantes de uma sonata clássica.
Um e outro sistema, nas suas mãos, torna-se matéria de uso para a composição. A "lógica paradoxal" do neoclassicismo de Stravinski e a "recusa ao purismo de estilo" de Mahler estão entre os ancestrais assumidos dessa nova música "poliestilística", em que figuras barrocas, microtonalismo e a música popular mais trivial se sucedem e se chocam em torno a uma imagem inatingível.
Que um compositor russo fizesse a escolha da pluralidade em pleno regime de Brejnev não passou despercebido a ninguém; e Schnittke amargou muitos anos escrevendo trilhas de cinema para sobreviver.
Também essa experiência acabou invadindo sua música, que tem um interesse especial pela banalidade, "o que vem de fora", asseverando sua supremacia contra a música de dentro. Isso inclui não só canções de aluguel, mas também as banalidades da própria música contemporânea, das rotinas cansadas do piano preparado às harmonias seriais, sem perspectiva e sombra.
Não há como descrever a capacidade de Schnittke de fazer descolar a capa de uma textura barroca, ou de uma valsa, para revelar o que tem por dentro de potência, sofrimento, esplendor.
A "forma circular do tempo" de que falava seu admirado colega Bernd Alois Zimmerman, em que se abrigam todos os estilos dos últimos quinhentos anos, confere à sua música uma carga dramática enorme. Mas o teatro da linguagem vai se pulverizando sob a pressão do impacto afetivo.
Nenhum compositor da segunda metade do século foi mais convincente e direto em suas devastações.
Isso vale tanto para as oito sinfonias (a nona ficou inacabada) e as grandes peças orquestrais, quanto para os concertos (para violino, viola, violoncelo, piano) e a vasta produção camerística.
Vale também para o "Réquiem", de 1977, uma das suas peças mais memoráveis, numa vertente de luto e lamentação especialmente característica; e vale para as duas óperas, "A Vida com um Idiota", de 1992, tendo no papel título um duplo de Lênin; e a portentosa "História do Doutor Fausto", estreada numa versão preliminar em 1995. Por essa época, Schnittke que há alguns anos deixara a Rússia para assumir uma cátedra de composição em Hamburgo, na Alemanha, já sofrera um terceiro derrame, que o privou da fala, mas não da música.
Entre suas peças mais conhecidas inclui-se o "Quarteto de Cordas nē 3" (1983), "provavelmente a peça mais gravada de todo repertório de câmara contemporâneo", na opinião do musicólogo Norman Lebrecht ("The Companion to 20th Century Music"). A cadência de um "Stabat Mater" renascentista de Orlando di Lasso, o tema principal da "Grande Fuga" de Beethoven e as notas correspondentes às letras DSCH, assinatura musical de Dmitri Schostakovich, combinam-se num ambiente único, assombroso, quase luminoso.
O Quarteto recebe agora uma gravação exemplar pelo Kronos, num CD duplo reunindo a obra completa para quarteto de cordas de Schnittke.
Toda a sua música aparece resumida e intensificada nesses quatro quartetos, que abrangem mais de duas décadas de composição. Quanta música para se ouvir, desde o "Nē 1", de 1966, um estudo de comoção austera em linguagem de doze tons, passando pelas fantasias mais russas do segundo (1980) e as pluralidades do terceiro, até as grandiosidades sóbrias do "Nē 4", de 1989, em que Schnittke parece ingressar num novo estilo tardio, de uma sabedoria bordejando a impessoalidade.
Corais de acordes blocados, melodias microtonais agudíssimas nos violinos em trinados, motos perpétuos alucinatórios: tudo isso poderia soar como simples textura, mas ganha no contexto um caráter de estranhamento, nas fronteiras do profético. São quartetos para responder, desta ponta do século, ao chamado de Bartók e Berg do outro lado. O que fica entre eles não explica, mas está implicado na diferença de expressão.
Aos 25 anos de vida comemorados numa caixa especial com dez CDs (Nonesuch), o quarteto Kronos já conquistou reconhecimento universal por seu empenho em gravar compositores da atualidade e também por retirar da música de concerto, nalguma medida, os formalismos e etiquetas de hábito.
Mas nos últimos tempos nem toda a simpatia conquistada era capaz de contrabalançar certa frustração pela escolha de um repertório mais explicitamente fácil (de Gorécki e Riley a uma antologia de arranjos de música antiga, no ano passado). Essa integral dos quartetos de Schnittke leva o Kronos de volta às alturas. É uma gravação definitiva, na medida em que se pode falar disso na música.
Além dos quartetos, o Kronos toca também um arranjo próprio do segundo movimento do "Concerto para Coro Misto" (perdido na antologia de 1997).
Num disco de tantos pontos altos, esse é um dos mais altos: uma elegia quase inaguentável, "onde cada verso se enche de pesar", como diz o título. Com a simplicidade de uma sequência melódica de semitons, harmonizados sem nenhuma extravagância, essa música está para além do bem e do mal, para além do bom e do mau gosto.
É o coração das trevas, aquilo que não se pode olhar de frente, mas que o canto das cordas deixa de algum modo escutar.
Ao fim do serviço ortodoxo russo, o coro e os celebrantes se juntam cantando duas palavras: "viechnaya pamyat" (memória eterna). A memória, no caso, é a de Deus. Mas para quem viveu sob o peso da ideologia stalinista, essa "memória eterna" tinha, com certeza, conotações mais sinistras. Há uma terceira memória, no entanto, que é a da própria música, em que vidas e almas se fazem e refazem para sempre, a cada interpretação.
Lançado poucos meses depois da morte de Schnittke, o CD transformou-se involuntariamente numa elegia, ou memorial para o próprio compositor. A memória da música é um monumento habitável, e cada um de nós há de consagrar ali, como for capaz, o esplendor e a miséria de um dos maiores compositores do século.
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Disco: Kronos Quartet Performs Alfred Schnittke - The Complete String Quartets Artista: Kronos Quartet Lançamento: Nonesuch (importado) Quanto: R$ 45 (em média, CD duplo)



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