São Paulo, sexta-feira, 08 de março de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"APÓS A RECONCILIAÇÃO"

Anne-Marie Miéville dirige longa e atua

Mulher de Godard tem fôlego próprio

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Sobre Anne-Marie Miéville pesa, antes de tudo, o estigma de ser "a mulher de Godard". Duplo estigma: primeiro, o de existir à sombra do mais mitológico dos cineastas vivos; segundo, o de fazer filmes de tão árida compreensão quanto os do marido.
"Após a Reconciliação" mostra que Miéville não merece nem um nem outro. Seu cinema tem pouco de Godard. A principal semelhança: certo modo de dispor a música, a intromissão da tela preta em alguns momentos, interrompendo o fluxo das imagens.
A principal diferença: é um filme "com história" (parece propaganda de filmes pornôs), isto é, começo, meio e fim praticamente nessa ordem. Uma outra, nada secundária: se Godard é o cineasta do improviso, Miéville trabalha aqui com um texto claro, declamado, ao menos em aparência, preparado previamente.
Quanto ao casal envolvido na citada reconciliação, é composto por ela mesma, Miéville, e Jean-Luc Godard. Pode ser em parte mera questão de economia. Mas quem garante que o ator Godard não seja Godard em pessoa?
A indistinção que se estabelece não é gratuita. Logo notamos que o discurso dos personagens sobre o amor não é senão isso: discurso. "Após a Reconciliação" é, a rigor, um filme sobre linguagem, sobre a relação entre palavras e coisas.
Vem daí seu lado cinematográfico por excelência, não teatral. O teatro nos coloca diante de palavras e pessoas. O cinema nem tanto. Existe entre as imagens das pessoas e as pessoas propriamente ditas a mesma distância que entre as palavras e as coisas.
Tal distância é imperceptível, mas intransponível. O Godard que ali vemos não é o famoso Godard. Pode ser um ator, uma sombra, ou Robert. O filme pode ser visto como a tentativa de expor o mistério de cada ser: aquilo que o separa dos demais e aquilo que o leva ao encontro dos outros, o que se comunica -ou não.
Como se a busca da reconciliação de que fala o título fosse menos a do casal do que aquela entre o homem e as palavras. Como se as palavras, desnaturadas num mundo de imagens vazias, precisassem ser reencontradas.
Pensando bem, Anne-Marie Miéville não está tão distante assim de seu marido ilustre. Mas ninguém se engane, este não é um filme "da mulher do Godard". Ou por outra, a mulher do Godard, bem moderna, tem fôlego próprio, e não é pequeno.



Após a Reconciliação
Après la Reconciliation     
Direção: Anne-Marie Miéville
Produção: França, 2000
Com: Anne-Marie Miéville, Jean-Luc Godard, Claude Perron, Jacques Spiesser
Quando: a partir de hoje no Top Cine


Texto Anterior: Crítica: Venturi radicaliza teatro para chegar ao cinema
Próximo Texto: Assassinato em Gosford Park": Robert Altman aborda dois mundos em comédia genial
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.