São Paulo, quarta-feira, 08 de maio de 2002

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ANÁLISE

Idiossincrática, ela permaneceu longe de dogmas

TIAGO MESQUITA
CRÍTICO DA FOLHA

A obra de Mira Schendel deve ser a mais idiossincrática e independente da arte moderna brasileira do pós-guerra. A artista manteve firme distância do dogmatismo de grupos ou orientações poéticas mais genéricas -talvez por conta de um princípio interrogativo em seu trabalho.
Seu olho desconfiava do que via, do sentido das coisas. Através do toque, sua obra encontrou uma realidade mais pulsante.
Em suas pinturas da década de 50, a artista, ao olhar para a cena, a decompõe em blocos pesados de cor, instituindo um desequilíbrio entre as partes. Nas naturezas-mortas, a ordem dos objetos é desconjuntada.
A unidade do motivo é reconstituída em planos frontais; a obra não reproduz um espaço visto, uma disposição formal ou de luz, mas lida com esses elementos como peças sólidas, que cartografam o lugar de maneira afetiva, atribuindo sentido diverso ao do análogo do olhar. Na reprodução de um espaço, as partes se descolam de sua função óptica e são reagrupadas como elementos singulares.
A artista desconfia de uma harmonização que imita a luz natural. Toma cautela, apalpa as coisas, como se elas tivessem se descolado de seu sentido na cena. Em telas feitas em juta, a cor reduz sua presença como elemento óptico, mostrando-se matéria arenosa, que se sedimenta lentamente, ocupando o mesmo espaço que nós.
E tudo vira coisa no mundo que perdeu o encanto e dissolveu os sentidos culturais mais fortes entre os artefatos e os homens. Aí, Mira se afasta do drama. Pois tais efeitos não a impedem de uma ação transformadora.
Nas "Monotipias", traçava sobre papéis finos linhas quebradiças, percorrendo a superfície transparente e potencializando o vazio. Aquele branco, sem frente nem verso, adquiria a densidade que o torna particular. O divórcio entre o significado e a coisa permite à artista retirar leite de pedra, como se aquelas coisas decaídas no mundano tivessem nova chance.
Na galeria André Millan, objetos menos importantes em sua carreira e as obras que a consagraram parecem se comungar no uso de signos desencantados, que procuram vida além de seus sentidos tradicionais.



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