São Paulo, segunda-feira, 08 de maio de 2006

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FORMA&ESPAÇO

Apropriações perversas

GUILHERME WISNIK
COLUNISTA DA FOLHA

Desde a Guerra do Golfo, em 1991, que se generalizou uma imagem da chamada guerra pós-moderna, como uma operação cirúrgica e "indolor", assemelhada, nas imagens de TV, a telas de videogame. Isso, portanto, já não é mais uma novidade.
Acontece que as novas estratégias de guerra do Exército israelense, em operações militares na Cisjordânia, exponenciam em muito essa desmaterialização da batalha campal, valendo-se ironicamente de um arsenal teórico formulado por um pensamento crítico ao capitalismo, na fronteira entre filosofia, artes e arquitetura. Essa é a tese defendida pelo arquiteto e professor israelense Eyal Weizman, conferencista no "Seminário Arquitetura", evento integrante da 27ª Bienal de SP.
Weizman sustenta a idéia de que as batalhas na cidade não deixam de ser, no fundo, conflitos entre diferentes concepções de cidade. Assim, descreve a operação posta em prática por Israel na invasão de Nablus, em 2002. Tal operação consiste numa ofensiva não por vias públicas, mas por dentro das casas, atingindo alvos estratégicos de modo imprevisto.
Desenha-se, aí, uma "geometria inversa", em que os deslocamentos de ataque ocorrem através de túneis escavados "silenciosamente" entre as paredes dos espaços domésticos, enquanto as tropas de resistência palestina armam barricadas nas ruas.
Não é o elogio dessa "destruição inteligente" que conduz a argumentação de Weizman, mas o desmascaramento da ideologia que apresenta essa nova guerra como uma alternativa mais humana ao paradigma anterior dos bombardeios arrasa-quarteirões e que, ao mesmo tempo que destrói paredes de casas, constrói uma muralha isolando territórios. Sua pesquisa mostra como essa estratégia de penetração na cidade por "enxames" ocultos está em sintonia com a noção de não-linearidade e de rede, desenvolvida por teóricos como Deleuze e Guattari.
Na verdade, a inteligência militar israelense instrumentaliza os seus conceitos de espaços "lisos" e "estriados", alisando as estrias da cidade. Nablus, assim como a maior parte das cidades da região, é plena de "estrias", isto é, barreiras, tais como caminhos tortuosos, becos. No entanto, a sua densidade de casas ombro a ombro também permite vê-la como um espaço "liso", contínuo, desde que atravessado por dentro, sujeito ao avanço simultâneo de redes de penetração.
Como explica Weizman, a figura do "soldado filósofo" é muito valorizada em Israel, e é comum que oficiais da "esquerda" do Exército façam cursos de pós-graduação em ciências humanas e arquitetura, incorporando as suas revisões críticas semiológicas e pós-estruturalistas.
Outros exemplos de apropriações militares que resultaram em reversões ideológicas do original são os casos da obra do artista Gordon Matta-Clark e do arquiteto Bernard Tschumi: a erosão de edifícios abandonados problematizando a compartimentação dos espaços privados, pelo primeiro, e a reflexão sobre como os espaços marginais questionam a hierarquia e os "limites" da arquitetura, pelo segundo. Pela mesma via, se a arte e a arquitetura procuram ter um viés político, a guerra pós-moderna se pretende ideologicamente neutra.


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