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FORMA&ESPAÇO
Apropriações perversas
GUILHERME WISNIK
COLUNISTA DA FOLHA
Desde a Guerra do Golfo,
em 1991, que se generalizou
uma imagem da chamada guerra
pós-moderna, como uma operação cirúrgica e "indolor", assemelhada, nas imagens de TV, a telas
de videogame. Isso, portanto, já
não é mais uma novidade.
Acontece que as novas estratégias de guerra do Exército israelense, em operações militares na
Cisjordânia, exponenciam em
muito essa desmaterialização da
batalha campal, valendo-se ironicamente de um arsenal teórico
formulado por um pensamento
crítico ao capitalismo, na fronteira entre filosofia, artes e arquitetura. Essa é a tese defendida pelo
arquiteto e professor israelense
Eyal Weizman, conferencista no
"Seminário Arquitetura", evento
integrante da 27ª Bienal de SP.
Weizman sustenta a idéia de
que as batalhas na cidade não
deixam de ser, no fundo, conflitos
entre diferentes concepções de cidade. Assim, descreve a operação
posta em prática por Israel na invasão de Nablus, em 2002. Tal
operação consiste numa ofensiva
não por vias públicas, mas por
dentro das casas, atingindo alvos
estratégicos de modo imprevisto.
Desenha-se, aí, uma "geometria
inversa", em que os deslocamentos de ataque ocorrem através de
túneis escavados "silenciosamente" entre as paredes dos espaços
domésticos, enquanto as tropas
de resistência palestina armam
barricadas nas ruas.
Não é o elogio dessa "destruição
inteligente" que conduz a argumentação de Weizman, mas o
desmascaramento da ideologia
que apresenta essa nova guerra
como uma alternativa mais humana ao paradigma anterior dos
bombardeios arrasa-quarteirões
e que, ao mesmo tempo que destrói paredes de casas, constrói
uma muralha isolando territórios. Sua pesquisa mostra como
essa estratégia de penetração na
cidade por "enxames" ocultos está em sintonia com a noção de
não-linearidade e de rede, desenvolvida por teóricos como Deleuze e Guattari.
Na verdade, a inteligência militar israelense instrumentaliza os
seus conceitos de espaços "lisos" e
"estriados", alisando as estrias da
cidade. Nablus, assim como a
maior parte das cidades da região, é plena de "estrias", isto é,
barreiras, tais como caminhos
tortuosos, becos. No entanto, a
sua densidade de casas ombro a
ombro também permite vê-la como um espaço "liso", contínuo,
desde que atravessado por dentro,
sujeito ao avanço simultâneo de
redes de penetração.
Como explica Weizman, a figura do "soldado filósofo" é muito
valorizada em Israel, e é comum
que oficiais da "esquerda" do
Exército façam cursos de pós-graduação em ciências humanas e
arquitetura, incorporando as
suas revisões críticas semiológicas
e pós-estruturalistas.
Outros exemplos de apropriações militares que resultaram em
reversões ideológicas do original
são os casos da obra do artista
Gordon Matta-Clark e do arquiteto Bernard Tschumi: a erosão
de edifícios abandonados problematizando a compartimentação
dos espaços privados, pelo primeiro, e a reflexão sobre como os espaços marginais questionam a
hierarquia e os "limites" da arquitetura, pelo segundo. Pela
mesma via, se a arte e a arquitetura procuram ter um viés político, a guerra pós-moderna se pretende ideologicamente neutra.
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