São Paulo, sábado, 08 de junho de 2002

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"WALTER BENJAMIN: TRADUÇÃO E MELANCOLIA"

Tese tem texto claro

Obra tematiza a teoria da tradução de Benjamin

GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Resultado de uma tese doutoral, este livro estupendo é a prova do alto nível que alcançou a produção intelectual universitária no Brasil. Um ensaio que abre as portas para quase todos os ramos do conhecimento, inclusive a reflexão sobre a linguagem e a natureza, questão essencial sobretudo hoje em dia, em que "natura" rima com catástrofe, seja lá no hemisfério Norte quanto aqui no Sul. Afinal, o livro ou a biblioteca não deixam de ser a planta acumulada e o pré-requisito, a página em branco, de toda a tradução.
O leitor, mesmo o leigo, entrará em contato com as interpretações e implicações linguísticas, filosóficas, psicológicas e políticas do ato de traduzir e suas afinidades com o humor melancólico, evidenciadas por Walter Benjamin (1892-1940), o alemão marxista, tradutor de Proust e Baudelaire, que tem despertado o interesse entre nós, quiçá por conta do lastro cultural barroco em comum.
Em sua tese "A Origem do Drama Barroco Alemão", Benjamin afirma: "A renascença investiga o universo, e o barroco, as bibliotecas. Sua meditação tem o livro como correlato". É uma pena que Benjamin não tivesse a oportunidade de contemplar em Congonhas do Campo os profetas de Aleijadinho.
O badaladíssimo francês Jacques Derrida, o teórico pós-moderno da desconstrução, foi sortudo em conhecer a transcriação antropofágica, o ouro barroco de Haroldo de Campos lavrado no garimpo descolonizador do nosso eufórico e órfico modernista, Oswald de Andrade, que dizia da importância do que se ouve, e não apenas do que houve.
É de tirar o chapéu para a reflexão de Suzana Kampff Lages, que leu tudo em várias línguas o que diz respeito à obra de Benjamin, acerca da tradução feita pelos poetas Augusto e Haroldo de Campos, rompendo o complexo colonial de inferioridade na maneira de lidar, a partir de dentro do material linguístico, com as obras e os autores dos países hegemônicos. Da necessidade de se traduzirem as obras estrangeiras com luz própria, espécie de tradução bárbara, para usar um símile da antropofagia dos anos 20.
Escreve Lages que os poetas Augusto e Haroldo de Campos se valem de "uma estratégia antieurocêntrica, antietnocêntrica, desconstrutiva, articulada a partir do conceito de canibalismo, entendido como apropriação de energia vital do outro, a partir de sua destruição, ou seja, a partir de um conceito central do modernismo brasileiro, o conceito oswaldiano de antropofagia".
Num país como o Brasil formar uma escola de tradutores é uma coisa tão vital quanto o consumo de farinha de mandioca, a mandioca como a rainha do Brasil, a mandioca que foi mastigada pelo canibal ensaísta Montaigne no século 16, citado por Lages em sua investigação sobre a leitura dos textos antigos.
Aliás, esse livro da estudiosa brasileira vai além de uma exegese da obra benjaminiana. "Tanto a melancolia quanto a tradução possuem uma história singular. Cada nova época procura encontrar novas soluções para antigos problemas, ou melhor, cada época busca recolocar as antigas questões em nova chave. No século 20 a história da melancolia recebeu um aporte decisivo com a teoria psicanalítica de Freud."
Dir-se-ia que o objeto desse livro, parafraseando o filósofo espanhol Ortega Y Gasset sobre a miséria e o esplendor da tradução, é a ambivalência do ato de traduzir: o coitado do tradutor, queimando a mufa em cima de um texto que não é seu, admirando-o loucamente, ganhando mal para isso, e o sentimento de júbilo, às vezes interferindo a violência, de transviver o texto alheio. O que é no fundo o paradigma da própria atividade intelectual e reflexiva, caso contrário o tradutor estaria privado de prazer.
Dos textos brasileiros sobre Benjamin, o de Lages ganha brilho e destaque pela clareza e, pasmem, pela didática. Existe nele uma unidade orgânica, sem enveredar para a volúpia dos modismos fragmentários que compõem o frenesi pós-moderno.
Evitando o hermetismo esnobe, sem contudo deixar de tocar em questões profundas e complexas, a autora possui o mérito de, ao tematizar a teoria da tradução de Benjamin, não despolitizar a obra do grande escritor berlinense.
A despeito dos traços pessoais e da "interiorização narcísica", existe em Benjamin a percepção aguda da "resignação melancólica" na contemporaneidade, sobretudo em relação ao intelectual de esquerda que abdicou de agir ou de acreditar na ação, cuja semelhança surge na dificuldade de narrar com experiência vivida, enfim, o caráter problemático da narração no mundo moderno.
O que diria o saturnino e tristonho Benjamin se conhecesse o antípoda disso materializado na narrativa do folclore, tal qual foi sistematizado por Luís da Câmara Cascudo, o brasileiro feliz?


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "Glauber Pátria Rocha Livre"



Walter Benjamin: Tradução e Melancolia     
Autora: Suzana Kampff Lages
Lançamento: Edusp
Quanto: R$ 26 (264 págs.)




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