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WALTER SALLES
O elogio do amor, segundo Almodóvar
Há filmes que são como
uma evidência, nos quais
tudo adquire uma extraordinária
força expressiva, franqueando o
trabalho de um cineasta para o
grande público. É o caso de
"Amarcord" para Fellini ou
"Fanny e Alexander" para Bergman. "Fale com Ela", o novo filme de Almodóvar, que estreou há
pouco na Europa, projeta o cineasta espanhol nesse território.
Depois de ganhar o prêmio de
melhor diretor em Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro
com "Tudo sobre Minha Mãe",
Almodóvar volta com um filme
na contramão. Poderia ter filmado com atores conhecidos. Não o
fez. Optou por um filme arriscado, com cenas que fogem ao clima
politicamente correto reinante. O
resultado é uma das obras mais
lúcidas e corajosas dos últimos
tempos.
Amar, verbo transitivo. Marco,
jornalista argentino radicado em
Madri, apaixona-se por Lydia,
uma toureira que se separou há
pouco de seu amante. Benigno,
um jovem enfermeiro, é apaixonado por Alicia, jovem bailarina
que se acidentou e vive há anos
em coma numa cama de hospital.
As cenas do deslumbrante "Café
Muller", coreografia de Pina
Bausch que abre o filme, dão a
chave do que acontecerá. As vidas
desses quatro personagens vão se
entrelaçar inexoravelmente.
O acaso entra em jogo quando
Lydia é gravemente ferida por um
touro e é levada para o hospital
onde Benigno cuida de Alicia.
Durante as noites de vigília, Marco percebe que Benigno, no quarto ao lado, conversa com Alicia,
como se ela pudesse ouvi-lo. Compreende-se por que Benigno foi
assistir ao espetáculo de Pina
Bausch: para ver por Alicia. Para
poder melhor contar a emoção
que ressentiu. Por mais que o seu
gesto não faça sentido do ponto
de vista médico, Benigno segue
alimentando Alicia com palavras, sob o olhar cúmplice de
Marco. Estabelece-se logo uma
oposição entre aquilo que é científico, racional, e a fé amorosa.
É a mesma fé que move Almodóvar e que lhe permite transformar um ato facilmente condenável em uma das mais lindas e generosas cenas de amor da história
do cinema. Benigno lava o corpo
nu de Alicia, ao mesmo tempo em
que lhe fala de um filme mudo
que viu. É "O Amante que Encolheu", alusão ao "Homem que
Encolheu", clássico de Jack Arnold. Nas cenas do filme mudo, o
homem minúsculo acaba buscando refúgio no sexo feminino.
Quando voltamos à realidade,
aprendemos duas notícias desconcertantes. Lydia não resistiu
às feridas e morreu. E Alicia, mesmo em coma, engravidou. Morte
e vida outra vez entrelaçadas.
Mas Benigno não se chama Benigno à toa. Benigno, o inocente,
aquele que veio para curar a insensibilidade do mundo. Suspeito
e encarcerado por aquilo que a
justiça considera um estupro, e
ele, um gesto carregado de amor,
Benigno vai partir como um anjo.
E Alicia, fecundada por Benigno,
vai voltar lenta e milagrosamente
à tona e à vida. Convalescente,
Alicia assiste a um novo espetáculo de Pina Bausch. E encontra
Marco. Um vai, outro vem. O ciclo se fecha, de forma generosa e
precisa.
Nietzsche escreveu que aquilo
que se faz por amor está além do
bem e do mal. Em "Fale com Ela",
Almodóvar nunca julga os seus
personagens. O humanismo dilacerante de seu filme, ao contrário,
abre os nossos olhos e toca os nossos sentidos, suscitando emoção e
reflexão. O sexo volta a ter uma
função libertadora. O indizível e o
inexplicável se sobrepõem à frieza
científica. As participações especiais, como a cena luminosa em
que Caetano canta "Cucurrucucú
Paloma", só ajudam a irrigar o
filme. E tudo é dito sem um plano
a mais, demonstrando que Almodóvar atingiu um alto grau de
maturidade narrativa.
As luzes do cinema se acendem.
Difícil conter as lágrimas. Difícil
não lembrar amores perdidos. E
de Borges: "Os poentes e as gerações/ Os dias e nenhum foi o primeiro/ O olho decifrando a penumbra/ O amor dos lobos no
amanhecer/ A torre de Babel e a
soberba/ As infindáveis areias do
Ganges/ O tempo circular dos estóicos/ O xadrez e a álgebra dos
Persas/ Os rastros das grandes migrações/ A busca incessante. O
mar aberto/ Cada remorso e cada
lágrima/ Todas essas coisas foram
necessárias/ Para que nossas
mãos pudessem se encontrar".
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