São Paulo, sábado, 08 de junho de 2002

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WALTER SALLES

O elogio do amor, segundo Almodóvar

Há filmes que são como uma evidência, nos quais tudo adquire uma extraordinária força expressiva, franqueando o trabalho de um cineasta para o grande público. É o caso de "Amarcord" para Fellini ou "Fanny e Alexander" para Bergman. "Fale com Ela", o novo filme de Almodóvar, que estreou há pouco na Europa, projeta o cineasta espanhol nesse território.
Depois de ganhar o prêmio de melhor diretor em Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro com "Tudo sobre Minha Mãe", Almodóvar volta com um filme na contramão. Poderia ter filmado com atores conhecidos. Não o fez. Optou por um filme arriscado, com cenas que fogem ao clima politicamente correto reinante. O resultado é uma das obras mais lúcidas e corajosas dos últimos tempos.
Amar, verbo transitivo. Marco, jornalista argentino radicado em Madri, apaixona-se por Lydia, uma toureira que se separou há pouco de seu amante. Benigno, um jovem enfermeiro, é apaixonado por Alicia, jovem bailarina que se acidentou e vive há anos em coma numa cama de hospital. As cenas do deslumbrante "Café Muller", coreografia de Pina Bausch que abre o filme, dão a chave do que acontecerá. As vidas desses quatro personagens vão se entrelaçar inexoravelmente.
O acaso entra em jogo quando Lydia é gravemente ferida por um touro e é levada para o hospital onde Benigno cuida de Alicia. Durante as noites de vigília, Marco percebe que Benigno, no quarto ao lado, conversa com Alicia, como se ela pudesse ouvi-lo. Compreende-se por que Benigno foi assistir ao espetáculo de Pina Bausch: para ver por Alicia. Para poder melhor contar a emoção que ressentiu. Por mais que o seu gesto não faça sentido do ponto de vista médico, Benigno segue alimentando Alicia com palavras, sob o olhar cúmplice de Marco. Estabelece-se logo uma oposição entre aquilo que é científico, racional, e a fé amorosa.
É a mesma fé que move Almodóvar e que lhe permite transformar um ato facilmente condenável em uma das mais lindas e generosas cenas de amor da história do cinema. Benigno lava o corpo nu de Alicia, ao mesmo tempo em que lhe fala de um filme mudo que viu. É "O Amante que Encolheu", alusão ao "Homem que Encolheu", clássico de Jack Arnold. Nas cenas do filme mudo, o homem minúsculo acaba buscando refúgio no sexo feminino. Quando voltamos à realidade, aprendemos duas notícias desconcertantes. Lydia não resistiu às feridas e morreu. E Alicia, mesmo em coma, engravidou. Morte e vida outra vez entrelaçadas.
Mas Benigno não se chama Benigno à toa. Benigno, o inocente, aquele que veio para curar a insensibilidade do mundo. Suspeito e encarcerado por aquilo que a justiça considera um estupro, e ele, um gesto carregado de amor, Benigno vai partir como um anjo. E Alicia, fecundada por Benigno, vai voltar lenta e milagrosamente à tona e à vida. Convalescente, Alicia assiste a um novo espetáculo de Pina Bausch. E encontra Marco. Um vai, outro vem. O ciclo se fecha, de forma generosa e precisa.
Nietzsche escreveu que aquilo que se faz por amor está além do bem e do mal. Em "Fale com Ela", Almodóvar nunca julga os seus personagens. O humanismo dilacerante de seu filme, ao contrário, abre os nossos olhos e toca os nossos sentidos, suscitando emoção e reflexão. O sexo volta a ter uma função libertadora. O indizível e o inexplicável se sobrepõem à frieza científica. As participações especiais, como a cena luminosa em que Caetano canta "Cucurrucucú Paloma", só ajudam a irrigar o filme. E tudo é dito sem um plano a mais, demonstrando que Almodóvar atingiu um alto grau de maturidade narrativa.
As luzes do cinema se acendem. Difícil conter as lágrimas. Difícil não lembrar amores perdidos. E de Borges: "Os poentes e as gerações/ Os dias e nenhum foi o primeiro/ O olho decifrando a penumbra/ O amor dos lobos no amanhecer/ A torre de Babel e a soberba/ As infindáveis areias do Ganges/ O tempo circular dos estóicos/ O xadrez e a álgebra dos Persas/ Os rastros das grandes migrações/ A busca incessante. O mar aberto/ Cada remorso e cada lágrima/ Todas essas coisas foram necessárias/ Para que nossas mãos pudessem se encontrar".



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