São Paulo, quinta-feira, 08 de novembro de 2007

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NINA HORTA

O dia em que o frango virou faisão

Cada coisa que o imperador comia no caminho era riscada de nossa possibilidade

TEM UM livro, "Chame o Chef", que conta os desastres dos cozinheiros vida afora e o que fazem para remediar a situação. Isso nos fez pensar nas muitas quase catástrofes pelas quais passamos e que, é claro, nunca revelamos. Mas esta, apesar de mortal, vale a pena ser lida pela multidão de jovens que agora resolveram ser cozinheiros pelo glamour da coisa nem sempre tão glamourosa.
Tudo começou quando fomos convidadas pelo Palácio a fazer o jantar do imperador japonês que chegava de visita. Essas coisas são complicadas, envolvem muito protocolo. As promotoras enlouquecem com o vai-e-vem de informações, e um friozinho na barriga se instala, pensando nas péssimas acomodações de cozinha, nas tensões, reviravoltas, nos pedidos, quem é vegetariano, quem só come peixe, quem não come feijão nem frutas tropicais.
Para terem uma idéia, a própria promotora, escolada, uma das melhores de São Paulo, começou a ter sonhos estranhos que nem Freud explicava. Um deles: para agradar à imperatriz, subia numa das jaboticabeiras da fazenda Pinhal e, de lá, lançava os frutos maiores para a figura imperial apanhar, levantando a saia desenrolada do quimono.
Para nós, nada de muito especial. Fizemos um cardápio brasileiro bem caprichado e ficamos esperando. O imperador começou a visita ao Brasil lá pelo Acre. Cada coisa que comia no caminho era riscada de nossa possibilidade, como se um imperador só pudesse comer certa coisa uma vez na vida. Mas entende-se. (Uma eminente figura inglesa esteve aqui e disse ela que lhe deram tanto guaraná a ponto de ficar barriguda.) Comeu galinha, corta a galinha! Comeu porco, corta o porco! Comeu sardinha, corta a sardinha! Vai comer carne na USP! Corta a carne! E o imperador comia o que podia, e nossa lista minguava até não existir absolutamente nada vivo a ser morto e assado em homenagem a ele. Daí, o baixo clero (como chamamos toda a entourage que pajeia exageradamente um hóspede desses e que causa dores de cabeça inúteis a todos os hospedeiros) se lembrou de faisão.
Isso já faz muito tempo, e não era fácil arranjar faisões na praça. Até que, na véspera do jantar, um maravilhoso fornecedor disse que tinha centenas de belos faisões e que já ia entregar. Djá!! Chegou, encostou o caminhão e começou a jogar os bichos sobre a mesa. Congelados como pedras do mesolítico, plam, plam, batiam na madeira ribombando sua velhice.
Transtornadas, minha sócia e eu fizemos um deles com todo o capricho devido ao imperador. Suquinhos, ervas, fogo lento, fogo rápido, carinho, boa panela. O gosto era de pano de prato molhado. E não dava tempo para mais nada...
Hoje, depois de tanto tempo, podemos revelar um segredo (ou não?). O que foi para a mesa real? Frango regado com caldo de faisão, (um minicaldinho, diríamos). Frango enfeitado como faisão, recheado como faisão, com o nome de faisão, acompanhado com o vinho próprio para faisão, guarnições de faisão, que soube a todos como faisão dos bons.
Sem contar as rezas aos santos das causas impossíveis. E muito arroz. Caprichamos em arrozes nossos e japoneses. Imaginamos que o imperador esqueceria de tudo ao dar com montanhas de arroz para escolher, de todos os formatos e paladares.
Foi elogiado o jantar, muito elogiado. Ninguém jamais comera uma ave tão saborosa, tão bem recheada com frutas do Brasil. A receita, a receita, meu reino pela receita de faisão. Nunca demos, é claro, segredo de Estado. E aqui, entre nós, ficou apelidada de Carmen Miranda ou Madame Satã, já não me lembro. Mas fez história.
Essa foi a primeira. Houve muitas outras logo depois.


ninahorta@uol.com.br

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