São Paulo, segunda-feira, 08 de dezembro de 2008

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LUIZ FELIPE PONDÉ

Modas


O "conceito" de nativo-digital me soa tão vazio quanto o de nativo-preservativo

A EDUCAÇÃO é meu cotidiano e tenho amor por ela. O ensino é uma das áreas que mais sofre com modas e reflexão barata. Vou dar três exemplos e todos eles alimentam o risco da mediocridade no ensino.
Primeiro exemplo. Há algum tempo fomos varridos pela moda da pedagogia contra a opressão. A "teoria" de que existe uma "pedagogia libertária" que passa pela crítica "científica" da autoridade do professor que exerceria a ideologia da elite opressora me parece uma mitologia a serviço do mau ensino.
"Construir o ensino" junto com os alunos serve bem a professores preguiçosos e a alunos oportunistas. Desorienta a formação e nos abre a todo tipo de conversa fiada no lugar do trabalho cotidiano. Isso não significa que não haja trocas valiosas entre alunos e professores. Professores preguiçosos são como pais que querem "aprender" a função paterna ou materna com os filhos. Coitados dos filhos.
A desconstrução da figura do professor em nome da libertação do aluno é um dos maiores exemplos de abuso do conceito de ideologia. Não é por acaso que alunos cínicos facilmente fazem uso do discurso "libertário" para inviabilizar maiores esforços. O modo como a pedagogia se transformou em auto-ajuda coletiva chega a dar pena para quem tem alguma relação satisfatória (e isso é raro) com o ensino.
Segundo exemplo. Educar para o mercado. Péssimas qualidades humanas podem estar envolvidas na educação para o sucesso e para o mercado. Este equívoco é mais complexo e se alimenta da falsa identidade entre educação e treinamento profissional. Os dois tipos de formação podem estar juntos, mas o segundo tende a estrangular o primeiro no mundo da mercadoria em que vivemos.
A educação não pode ser identificada ao programa de sucesso na vida ou na democracia, sob risco de fazer da formação dos alunos algo banal como tudo que cheira aos anseios da maioria. Grandes números limitam qualquer eficácia pedagógica. Podem ser úteis no treinamento profissional (importante, é claro). Educação é detalhe, não estatística. O Ministério da Educação está sempre na borda do fracasso porque é vítima da estatística.
Este segundo exemplo nos leva ao terceiro, grande moda em nossa época. Fala-se muito que as crianças de hoje são mais inteligentes. Quem mediu? Como comparar crianças de hoje com crianças de mil anos atrás? Esta afirmação é pura fofoca de mercado.
A tecnologia, sim, pode garantir ganho profissional em nosso mundo. Seria um absurdo ser "contra" a tecnologia na educação. Mas isso nada tem a ver com formação. Profissão e formação são coisas distintas. Confundi-las já é sintoma da vida que agoniza sob a bota da mediocridade.
Não acho que os jovens hoje sejam tão diferentes como julga nossa vã pedagogia. O "conceito" de nativo-digital me soa tão vazio quanto o de nativo-celular ou nativo-preservativo. Saber navegar na internet nada tem a ver com conhecimento significativo. Essa "ciência do digital", em pedagogia, é muito mais marketing de quem vende essas tecnologias do que um dado da realidade.
Sem dúvida, a digitalização do cotidiano gera um hábito tecnológico, mas e daí? O aluno lida com isso todo dia. Se você mora longe da escola, talvez seja importante o ensino a distância (o foco é apenas a acessibilidade em si), mas o essencial ainda é a relação professor-aluno naquilo que ela tem de mais ancestral: a experiência (mais) formada em contato com a experiência em formação.
É uma ilusão achar que a pressão do mercado das tecnologias da educação não debilitará esta delicada experiência vivida entre seres humanos. O lucro sempre vence ao longo do tempo porque ele é uma lei natural no capitalismo. Não ver isso é má fé ou simples má formação. Ou equívoco. Estamos no mundo do que melhor responde ao princípio da mercadoria ou não?
Educar implica olhar para nossos eternos impasses: angústia moral, pânico cósmico, incerteza diante das decisões na vida, infidelidade nos afetos, crueldade, mentira, generosidade gratuita, mentira do progresso, desencontro entre nossa juventude e nossa maturidade. Enfim, a experiência humana para além das batedeiras de bolo, cartões de crédito, votos e internet.
Mediocridade pode dar lucro. Tecnologia é coisa banal, não forma ninguém. A democracia moderna pode se alimentar da mediocridade. Este risco é nossa grande sombra.

luiz.ponde@grupofolha.com.br


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