São Paulo, sábado, 09 de março de 2002

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Mirisola faz memórias "com mandiopã"

DA REPORTAGEM LOCAL

Leia a seguir trechos de entrevista com Marcelo Mirisola, que está lançando "O Azul do Filho Morto". (CASSIANO ELEK MACHADO)

Folha - Seu livro é todo feito de memórias. Em um dos ápices da ficção memorialista, "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust, o narrador recria os seus tempos de menino à partir do gosto de uma madeleine (um bolinho) embebida em chá. Qual foi a "madeleine" que dá largada às memórias de seu "Azul do Filho Morto"?
Marcelo Mirisola -
Quem não tem madeleine tem que caçar com mandiopã (salgadinho frito). Minha memória afetiva passa necessariamente pela TV e por essas quinquilharias que a acompanharam. Minha geração cresceu vendo (a cozinheira) Ofélia Anunciato e (o apresentador) Flávio Cavalcanti, brincando com kikos marinhos, comendo mandiopã.
Fico imaginando: no que o Marcel Proust estaria pensando se tivesse nascido em 1966? Nas mesmas tralhas que eu, né?

Folha - Vários elementos se repetem ao longo do livro. Uma gaiola com um coelho que cai no chão, uma menina que pula do sétimo andar, o protagonista que lambe azulejos, que toma ovos crus de três em três horas e come flores copo-de-leite. Por que você sempre volta a esses elementos?
Mirisola -
Eu até tomei cuidado para repetir o mínimo as imagens que vinham à cabeça, mas elas se repetem. Como diz a Lygia Fagundes, memória é invenção. A partir da realidade uso liberdade para exagerar, inventar, fazer literatura. Desses elementos que você mencionou, alguns são reais. Mas não sei muito bem quais são, de tanto que já me envolvi com essas e outras imagens do livro.

Folha - Existe uma carga erótica muito explícita na sua obra. Você considera sua literatura imoral, amoral, libertina?
Mirisola -
Não, só acho que sou livre. Outro dia alguém disse que eu tinha muita coragem de escrever este livro. Eu discordei. Coragem não. O combustível desse livro pode ser ressentimento, amargura, mesquinhez. O que assusta, o que pode associar com amoralidade, é o fato de eu levar a liberdade ao máximo, que é o ponto alto da minha literatura.

Folha - Seu personagem diz que "fluxo de consciência" é uma bobagem. Você concorda com ele?
Mirisola -
Acho que sim. Essa coisa de se entregar por completo ao que está passando na cabeça, isso de incorporar, é espiritismo. Eu me controlo. Quando vejo que a coisa está fugindo, eu paro.

Folha - Todos os seus textos são muito autobiográficos. Qual dos Mirisolas é mais Mirisola?
Mirisola -
Quando comecei a ler, me diziam que o escritor tinha que começar fazendo contos para depois ir para os romances. Achava uma babaquice, mas foi o que aconteceu comigo. Se você começar pelos contos de "Fátima Fez os Pés..." e de "O Herói Devolvido", depois seguir pela novela "Acaju" você desemboca em "Azul", que considero a melhor coisa que já fiz e resultado de todos esses livros. Este livro tem um pouco de cada um. Estou melhorando. Por isso continuo escrevendo.

Folha - É verdade que você leu seu primeiro livro aos 26 anos, como o Marcelo de "Azul..."?
Mirisola -
É. Comecei a ler e escrever no final de 89. O primeiro livro foi "Pergunte ao Pó", do John Fante. Eu me identifiquei muito. Tudo o que o personagem do livro não conseguia fazer, eu também não. Assim como o cara, eu não comia ninguém.

Folha - Existe algum assunto que você acha que não abordaria, por ser pesado demais?
Mirisola -
Acho que não, né? Consegui falar do que precisei até agora. Talvez daqui para a frente eu vire um covarde. Aí eu paro.


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