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Mirisola faz memórias "com mandiopã"
DA REPORTAGEM LOCAL
Leia a seguir trechos de entrevista com Marcelo Mirisola, que
está lançando "O Azul do Filho
Morto".
(CASSIANO ELEK MACHADO)
Folha - Seu livro é todo feito de
memórias. Em um dos ápices da ficção memorialista, "Em Busca do
Tempo Perdido", de Marcel Proust,
o narrador recria os seus tempos de
menino à partir do gosto de uma
madeleine (um bolinho) embebida
em chá. Qual foi a "madeleine" que
dá largada às memórias de seu
"Azul do Filho Morto"?
Marcelo Mirisola - Quem não
tem madeleine tem que caçar com
mandiopã (salgadinho frito). Minha memória afetiva passa necessariamente pela TV e por essas
quinquilharias que a acompanharam. Minha geração cresceu vendo (a cozinheira) Ofélia Anunciato e (o apresentador) Flávio Cavalcanti, brincando com kikos
marinhos, comendo mandiopã.
Fico imaginando: no que o Marcel Proust estaria pensando se tivesse nascido em 1966? Nas mesmas tralhas que eu, né?
Folha - Vários elementos se repetem ao longo do livro. Uma gaiola
com um coelho que cai no chão,
uma menina que pula do sétimo
andar, o protagonista que lambe
azulejos, que toma ovos crus de
três em três horas e come flores copo-de-leite. Por que você sempre
volta a esses elementos?
Mirisola - Eu até tomei cuidado
para repetir o mínimo as imagens
que vinham à cabeça, mas elas se
repetem. Como diz a Lygia Fagundes, memória é invenção. A
partir da realidade uso liberdade
para exagerar, inventar, fazer literatura. Desses elementos que você
mencionou, alguns são reais. Mas
não sei muito bem quais são, de
tanto que já me envolvi com essas
e outras imagens do livro.
Folha - Existe uma carga erótica
muito explícita na sua obra. Você
considera sua literatura imoral,
amoral, libertina?
Mirisola - Não, só acho que sou
livre. Outro dia alguém disse que
eu tinha muita coragem de escrever este livro. Eu discordei. Coragem não. O combustível desse livro pode ser ressentimento,
amargura, mesquinhez. O que assusta, o que pode associar com
amoralidade, é o fato de eu levar a
liberdade ao máximo, que é o
ponto alto da minha literatura.
Folha - Seu personagem diz que
"fluxo de consciência" é uma bobagem. Você concorda com ele?
Mirisola - Acho que sim. Essa
coisa de se entregar por completo
ao que está passando na cabeça,
isso de incorporar, é espiritismo.
Eu me controlo. Quando vejo que
a coisa está fugindo, eu paro.
Folha - Todos os seus textos são
muito autobiográficos. Qual dos
Mirisolas é mais Mirisola?
Mirisola - Quando comecei a ler,
me diziam que o escritor tinha
que começar fazendo contos para
depois ir para os romances. Achava uma babaquice, mas foi o que
aconteceu comigo. Se você começar pelos contos de "Fátima Fez os
Pés..." e de "O Herói Devolvido",
depois seguir pela novela "Acaju"
você desemboca em "Azul", que
considero a melhor coisa que já fiz
e resultado de todos esses livros.
Este livro tem um pouco de cada
um. Estou melhorando. Por isso
continuo escrevendo.
Folha - É verdade que você leu
seu primeiro livro aos 26 anos, como o Marcelo de "Azul..."?
Mirisola - É. Comecei a ler e escrever no final de 89. O primeiro
livro foi "Pergunte ao Pó", do
John Fante. Eu me identifiquei
muito. Tudo o que o personagem
do livro não conseguia fazer, eu
também não. Assim como o cara,
eu não comia ninguém.
Folha - Existe algum assunto que
você acha que não abordaria, por
ser pesado demais?
Mirisola - Acho que não, né?
Consegui falar do que precisei até
agora. Talvez daqui para a frente
eu vire um covarde. Aí eu paro.
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