São Paulo, sábado, 09 de março de 2002

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CRÍTICA

Destruição e esterilidade assombram autor

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Este primeiro romance de Marcelo Mirisola, autor de contos elogiados pela crítica, deve desagradar muitos leitores. Nem tanto pela prosa, que é simples, límpida e, salvo a linguagem chula, elegante. Mirisola é um estilista. O problema reside na narrativa, sempre no limiar da dissolução com a autobiografia e a poesia, e que nos faz perguntar: do que diabos ele está falando, afinal?
Não que não haja uma história aqui. Há, e, da maneira como nos é contada, parece bem colada à trajetória do próprio autor. Nascido em família burguesa, prestou serviço militar, viajou ao interior, morou em Santos e São Paulo, onde se dividiu entre o submundo e os sebos. Acabou em Florianópolis, onde a carreira de escritor antes rejeitado deslanchou.
Que o leitor nos desculpe por descrevermos a história assim, de supetão, mas julgamos não ter estragado o prazer da leitura. Mirisola despreza o enredo, que não passa, para ele, de "coisa de criança". Os personagens e situações não aparecem bem definidos, em cenas que interagem logicamente. Assomam como fantasmas pouco distintos, saídos da consciência do personagem principal, o único que nos é palpável: o narrador.
É tentador definir (se isso é possível) "O Azul do Filho Morto" como um "Bildungsroman", um romance de formação. A questão não está tanto no fato de o herói de Mirisola, ao contrário de o de um "Bildungsroman", não ser exatamente jovem. E de que, embora narre episódios de sua infância, tenha esticado sua trajetória muito além do período de formação. Em favor de nossa tese, poderíamos dizer que o reconhecimento público que o herói ganha como escritor poderia até ser visto como um ponto de ruptura, o momento em que a primeira batalha está ganha e ele passa a compreender sua missão artística.
A distinção baseia-se no fato de que não há um sentido final de redenção (pela arte ou por algum outro elemento) no livro de Mirisola. O que temos é a dissipação nas labaredas de um incêndio (real? imaginário?), no meio do qual o narrador elabora a imagem do filho morto num vidro de maionese. O romance se abre com a imagem de um coelho, sobre o qual comenta: "Vale que coelho é um bicho que fode. Um bicho que fode". Da carga priápica dessa imagem inicial o autor desenvolve sua obsessão em torno do desejo carnal e da posse, para enfim descartá-la no desfecho apocalíptico que arremeda Machado de Assis e suas "Memórias Póstumas de Brás Cubas". O defunto de Machado orgulha-se de não ter tido filhos. O narrador de "O Azul" diz: "Eu, da minha parte, creio que pior que deixar filhos é deixar livros. Os filhos podem esquecê-lo e renegá-lo [..." Os livros, não. São filhos amaldiçoados (os melhores, evidentemente) e mortos-vivos para sempre."
Afligido por esse novo e irreparável ato de criação, Mirisola imagina um filho natimorto, daí as imagens de destruição, desolação e esterilidade que surgem no final. Trata-se de mais um fantasma a lhe assombrar a consciência.


O Azul do Filho Morto     
Autor: Marcelo Mirisola
Editora: 34
Quanto: R$ 18 (172 págs.)




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