São Paulo, Terça-feira, 09 de Março de 1999
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O Brasil balança entre "Rui Barbosa" e "Jeca- Tatu"

ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas

Quando FHC foi eleito, havia a esperança de que aquele homem culto, com uma posição crítica de esquerda unida à capacidade de conciliar, seria nossa salvação. FH era o messias da USP, um "Rui Barbosa", um "José Bonifácio" pós-tudo. Com exceção dos seus colegas de academia, que sempre o invejaram com sublime descaro, o país suspirava, com olhos em alvo: "Nosso presidente é o máximo, ganha medalhas no Exterior!".
Nós, os imbecis, arquejávamos de orgulho: "Eu posso ser uma besta, mas o presidente é um crânio!" -e batíamos na cabeça com satisfação. Até FHC deve ter acreditado que seria o ponto de equilíbrio entre a velha esquerda fracassada e o "new deal" do capital. O liberalismo se oferecia como uma novidade rediviva, depois de tantos anos de desconfiança: "Sim... talvez... por que não?"
Talvez o mercado fosse a saída para séculos de engodos patrimonialistas, com a população paralisada por um universo escravista, sob uma oligarquia que botava a culpa os "inimigos externos". FH trazia um programa de ataque aos vícios ancestrais de nossas instituições políticas e administrativas.
Só que FH, por erros pessoais (ou porque talvez seja impossível), não conseguiu travar o "nobre pacto" entre o desenvolvimento interno, fronteira aberta e reforma do Estado.
Além disso, o tal "choque de capitalismo" não vinha inocentemente. A globalização da economia sem proteção interna implode um país. Sem contar, claro, a resistência dos oligarcas que ficaram examinando FHC e seu programa, até que decodificaram suas fragilidades (dificuldade de conflito, passividade, má comunicação etc.) e esvaziaram o tal "projeto Rui Barbosa" tucano.
Agora, estamos de volta ao pêndulo maldito de nossa falta de saída, nos defrontando com um novo "salvacionismo".

O coitadinho
Já que a inteligência (essa coisa suspeita que os "pedantes" exibem...) não funcionou, estamos partindo para a velha e boa burrice. O Brasil balança entre o projeto "Rui Barbosa" e o projeto "Jeca Tatu".
Itamar é o claríssimo ensaio de um "messianismo caipira" que virá.
Itamar é o sintoma de um estado de espírito que vai se consolidar. Ele faz o tipo ingênuo e traído, com que o "povo" se identifica. Itamar "confiou" em Collor e foi traído; confiou depois em FH e também foi "traído". Por isso, é um vingador. E, como nos vingadores de cordel, depois da confiança vem a ira santa.
Como alguém disse de Hitler, Itamar passa a imagem de que foi "vítima de uma grande injustiça". Claro que ele não é Hitler, mas até que ficaria bonitinho de camisa verde e bigode como Plínio Salgado.
Roseana Sarney acertou na mosca quando disse que "misteriosamente, Itamar se acredita credor de nossa gratidão". Ele adotou o marketing do "coitadinho", do trêmulo perseguido, a imagem do bobo emocional que cai em contos-do-vigário até da Lilian Ramos, a primeira-dama-por-uma-noite.
Itamar nos dá sentimento de culpa. Como a história do Brasil é feita de esperanças e frustrações, Itamar é a desconfiança mineira que não compra mais bondes; ele é o mineiro "desasnado" pela maldade dos litorâneos. Itamar está fundando um "populismo vitimizado". Lula também usa um pouco esse bordão, mas ele tem a barba, tem a pecha do ABC e, na algibeira, assoma-lhe uma foice e martelo, coisas que a classe média teme.
Itamar é o "classe-média" de guarda-chuva, é o tio de pijama, é o homem comum vestido de Tiradentes, sacaneado pelos intelectuais espertos. Ele voltou para erguer a bandeira dos enganados. Ele será o comandante supremo dos otários, dos frustrados, mas também será usado por raposas oportunistas, que já preparam o novo delírio político que vem por aí.
Itamar vai erguer a bandeira da "sabedoria no simplismo", da inteligência na burrice, que faltaria a estes sabichões da "realpolitik" com PhD em economia. Itamar é "pobre como o povo". Ele pode dizer de fronte erguida: "Eu não sei nada, portanto, tenho dignidade e grandeza".
Na literatura, os pobres de espírito tinham uma santidade, uma luz insuspeitada. Forrest Gump, o cretino que deu certo, e agora Roberto Benigni, o herói-bufão, mostram que a mediocridade populista ganha Oscar.

A revolução regressiva
Há na imprensa a comichão de apoiar Itamar. Colunistas chapas-pretas já falam dele com doçura, como se ele fosse o profeta cego que "fez o rei ficar nu". Mineiros desinformados arreiam os cavalos, para aderir ao MRIF (Movimento Revolucionário Itamar Franco). Como é doce o reducionismo montanhês...
O Brasil precisa, urgentemente, fazer a defesa de nossa "localidade", dentro da economia global inevitável -a necessária "terceira via" nacional. Mas isso é um assunto visto com tédio. Bom mesmo é o nacionalismo de galinheiro, dos velhos tempos. A volúpia de dizer aos gringos: "Não pago, danem-se... podem arrestar aviões e navios; ficaremos aqui na taba, em nossa "revolução regressiva", reconstruindo nosso mundinho de sapé e rapadura".
Itamar é a ilusão de auto-suficiência, é a moratória unilateral, é o "com quantos paus se faz uma canoa", é o "pão pão queijo queijo", é a beleza do precário, é a poética do atraso. A idéia é esquecer o mundo desenvolvido, tecnológico, que é a nossa inveja e vergonha, testemunha da mediocridade política brasileira.
Ao fracasso "antropofágico-tucano" da abertura da economia vai se opor a grossura do velho nacionalismo do Movimento da Anta.
Por outro lado, Itamar é o "anti-Alkimin", o "anti-Magalhães Pinto". Ele recusa o lado mineiro conciliador e proclama o mineiro teimoso. Itamar é oportunista, mas é honesto. Esse é um dos seus perigos. Em torno dele vão se agregar os 40 ladrões e Itamar será um Ali Babá crédulo.
Um dia, infalivelmente, vai denunciar os companheiros que o trairão, como o PT e Brizola que fingem respeitá-lo, para usá-lo. Imagino as conversas nos partidos, as risadas. Sempre alguém trairá o Itamar.
Itamar é legível. Suas categorias são límpidas, óbvias: "povo, pátria, heroísmo montanhês, capital espoliador, identidade nacional". Ele é fácil de ler como um gibi, enquanto nem mesmo FHC entende mais o que escreveu, enredado no emaranhado de suas alianças e agora manietado pelo FMI.
Itamar é autoritário. Debaixo de sua timidez trêmula, rola o autoritarismo intempestivo que o povo adora: "Ihh... o homem fica irritado à toa"...". Itamar tem o carisma do erro. Depois de tanta racionalidade fracassada, nada como a irritação iluminada, o caminho dos "pés-pelas-mãos", da santa impaciência que pode eclodir a qualquer momento. Ele é o "dane-se", o "pouco-me-importa", a tática da cabeça dura.
O povo está cansado da absurda recusa de FH em se comunicar, cansado de uma democracia vazia na qual o miserável não lucra nada, morando num Brasil arrasado pela violência, pela brutalidade de um dia-a-dia sinistro.
Por isso, o povo pode seguir fascinado esse líder de mau humor, o vingador de uma grande injustiça.
Itamar é o rancor do homem comum. Vai pegar feito uma música fácil. Quanto mais combatido, mais ele cresce. Quanto mais o Brasil piorar, mais ele melhora.


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