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CINEMA "KUNDUN"
Fábula de Scorsese sintoniza crença e cinefilia
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Um filme sobre a fé acaba sendo
sempre sobre o próprio cinema
também. Como nas religiões, tudo
o que o cinema pede desde o seu
nascimento é que se acredite (não
apenas nele, mas naquilo que se está vendo).
Daí a sintonia, para além de qualquer interesse militante ou de propaganda pela independência do
Tibete, entre um cineasta cinéfilo
como Martin Scorsese e o personagem central do seu filme "Kundun", o 14º dalai-lama, Prêmio Nobel da Paz de 1989 e um aficionado
pelo cinema desde pequeno.
Ao filmar a história de um menino comum que é transformado em
reencarnação do Buda da Compaixão por uma espécie de consenso
religioso em um país teocrático às
vésperas de ser invadido pela revolução cultural de Mao Tsé-tung,
Martin Scorsese parece estar tão
interessado na libertação do Tibete
do violento jugo chinês quanto
nessa analogia entre religião e cinema.
"Kundun" é um filme sobre a fé e
o autoconvencimento de um povo
e de um país, mas antes de mais nada do próprio protagonista desse
processo: um menino que tem de
se autoconvencer de que é a reencarnação do Buda e passar a agir de
acordo -o que pode nem sempre
ser muito difícil, especialmente
quando todos a sua volta repetem a
mesma coisa com a ajuda da música incessante, repetitiva e solene de
Philip Glass (aliás, o maior problema do filme).
Consenso
Todo Estado é constituído sobre
um princípio de autoconvencimento mais ou menos dissimulado, mais ou menos verossímil,
mais ou menos artificial.
Há sempre um consenso nacional de identidade que é construído
como princípio aglutinador (somos franceses, somos sérvios etc.).
Um Estado que expõe esse princípio em toda a sua fragilidade, um
Estado cuja força aglutinadora é o
autoconvencimento de um menino, mas também cujo valor fundamental é a perda do ego, e portanto
da identidade, não podia ser um alvo mais fácil para a invasão e o domínio de outras nações.
"Kundun" é não só um filme sobre o princípio de toda religião, e
do cinema (sobre o querer acreditar), mas também sobre a fragilidade dessa vontade -sua dimensão trágica.
Porque, ao encenar toda a saga
de sacralização de um menino
qualquer desde a sua "descoberta"
num vilarejo camponês, nos confins do Tibete, até a sua consagração como dalai-lama, o que Scorsese fez foi expor nessa fábula contemporânea a própria fragilidade
do estado em que vivemos, convencidos de sermos quem achamos que somos. E, nesse sentido,
não deixa de ter feito um filme um
pouco budista também.
Avaliação
Filme: Kundun
Direção: Martin Scorsese
Produção: EUA, 1997
Com: Tenzin Thuthob Tsarong, Gyurme
Tethong e Tulku Jamyang Kunga Tenzin
Quando: a partir de hoje no SP Market 1,
Interlar Aricanduva 9, Center Penha 3,
Morumbi 5, Belas-Artes Oscar Niemeyer,
Lumière 1 e circuito
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