São Paulo, Sexta-feira, 09 de Abril de 1999
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CINEMA "KUNDUN"
Fábula de Scorsese sintoniza crença e cinefilia

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

Um filme sobre a fé acaba sendo sempre sobre o próprio cinema também. Como nas religiões, tudo o que o cinema pede desde o seu nascimento é que se acredite (não apenas nele, mas naquilo que se está vendo).
Daí a sintonia, para além de qualquer interesse militante ou de propaganda pela independência do Tibete, entre um cineasta cinéfilo como Martin Scorsese e o personagem central do seu filme "Kundun", o 14º dalai-lama, Prêmio Nobel da Paz de 1989 e um aficionado pelo cinema desde pequeno.
Ao filmar a história de um menino comum que é transformado em reencarnação do Buda da Compaixão por uma espécie de consenso religioso em um país teocrático às vésperas de ser invadido pela revolução cultural de Mao Tsé-tung, Martin Scorsese parece estar tão interessado na libertação do Tibete do violento jugo chinês quanto nessa analogia entre religião e cinema.
"Kundun" é um filme sobre a fé e o autoconvencimento de um povo e de um país, mas antes de mais nada do próprio protagonista desse processo: um menino que tem de se autoconvencer de que é a reencarnação do Buda e passar a agir de acordo -o que pode nem sempre ser muito difícil, especialmente quando todos a sua volta repetem a mesma coisa com a ajuda da música incessante, repetitiva e solene de Philip Glass (aliás, o maior problema do filme).

Consenso
Todo Estado é constituído sobre um princípio de autoconvencimento mais ou menos dissimulado, mais ou menos verossímil, mais ou menos artificial.
Há sempre um consenso nacional de identidade que é construído como princípio aglutinador (somos franceses, somos sérvios etc.). Um Estado que expõe esse princípio em toda a sua fragilidade, um Estado cuja força aglutinadora é o autoconvencimento de um menino, mas também cujo valor fundamental é a perda do ego, e portanto da identidade, não podia ser um alvo mais fácil para a invasão e o domínio de outras nações.
"Kundun" é não só um filme sobre o princípio de toda religião, e do cinema (sobre o querer acreditar), mas também sobre a fragilidade dessa vontade -sua dimensão trágica.
Porque, ao encenar toda a saga de sacralização de um menino qualquer desde a sua "descoberta" num vilarejo camponês, nos confins do Tibete, até a sua consagração como dalai-lama, o que Scorsese fez foi expor nessa fábula contemporânea a própria fragilidade do estado em que vivemos, convencidos de sermos quem achamos que somos. E, nesse sentido, não deixa de ter feito um filme um pouco budista também.


Avaliação



Filme: Kundun
Direção: Martin Scorsese
Produção: EUA, 1997
Com: Tenzin Thuthob Tsarong, Gyurme Tethong e Tulku Jamyang Kunga Tenzin
Quando: a partir de hoje no SP Market 1, Interlar Aricanduva 9, Center Penha 3, Morumbi 5, Belas-Artes Oscar Niemeyer, Lumière 1 e circuito



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