São Paulo, quarta-feira, 09 de maio de 2007

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

O casamento segundo Sondheim

É o maior gênio vivo da Broadway; o lugar dele é na companhia de Porter, muito acima de Bernstein

PAULO FRANCIS costumava dizer que o problema da morte era deixar de ouvir Cole Porter. Concordo com a frase, mas gostaria de incluir Stephen Sondheim no lamento. Sondheim é o maior gênio vivo da Broadway e quando recordamos as melhores canções ("Send in the Clowns", "Not a Day Goes By", "Losing My Mind"), entendemos de imediato que o lugar dele é na companhia de Porter, ou Gershwin, ou Rodgers, e muito acima de Bernstein, para quem escreveu as letras de "West Side Story".
Sondheim tem novo musical em Nova York e, leitores, se vocês forem pessoas de sorte, Nova York é o destino. Claro que, para sermos rigorosos, o musical não é novo. Cronologicamente falando, data de 1970.
Mas ao contrário da cultura musical desse tempo, pateticamente obcecada com os dramas políticos da contracultura (o insuportável "Hair" é o exemplo máximo), Sondheim ocupou-se do que é permanente na natureza humana. Hoje, ver ou rever "Company" é uma experiência tão nova e tão comovente como em 1970.
"Company" é uma peça sobre o casamento. Ou, como diria Musil, é uma peça sobre os homens sem qualidades: capazes de habitar o mundo moderno sem estabelecer nenhuma ligação substancial com os seus semelhantes. Esse homem é Bobby, solteiro, a caminho dos 35, com cinco pares de amigos, casadíssimos, que esperam ver o amigo em situação "regular". Bobby vai passando por todos eles. E todos eles vão dissertando sobre os prazeres e os desprazeres do casamento com uma ironia e uma ambigüidade que são Sondheim "vintage".
O exemplo máximo dessa ironia e dessa ambiguidade acontece com "Sorry-Grateful", seguramente uma das mais belas canções de toda a história da Broadway, e acontece quando Bobby pergunta a um dos casados se ele nunca lamentou ter dado o passo matrimonial. A resposta, que o título resume, é a única resposta possível para quem partilha os dias com alguém: lamentamos e agradecemos; duvidamos e temos absoluta certeza; sentimos que não estamos sós e sabemos que continuamos sós.
"Company" não é apenas um musical sobre adultos. É sobretudo um musical para adultos, sem que o patético sentimentalismo romântico se introduza nos versos, pronto para distorcer a verdade última da nossa condição: sim, existem vários motivos para não estarmos com alguém; mas talvez não exista nenhum para estarmos sozinhos. É essa conclusão, dolorosa e sem entusiasmo, que Bobby verbaliza no tema final, "Being Alive", uma meditação pessoal e espiritual de arrasadora beleza. Para quê deixar entrar na nossa vida alguém disposto a sentar-se na nossa cadeira, a arruinar o nosso sono, a conhecer-nos profundamente e, quem sabe, a magoar-nos profundamente? Porque estar só é estar só, não é estar vivo.
E se você, leitor, ainda tiver dúvidas sobre o casamento depois de ouvir ou assistir a "Company", não desespere: talvez esse seja o estado natural. Com a certeza de que a pessoa que ama terá as mesmas dúvidas. E com dúvidas ficará ao seu lado.


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