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JOÃO PEREIRA COUTINHO
O casamento segundo Sondheim
É o maior gênio vivo da Broadway; o lugar dele é na companhia de Porter, muito acima de Bernstein
PAULO FRANCIS costumava dizer que o problema da morte
era deixar de ouvir Cole Porter. Concordo com a frase, mas gostaria de incluir Stephen Sondheim
no lamento. Sondheim é o maior gênio vivo da Broadway e quando recordamos as melhores canções
("Send in the Clowns", "Not a Day
Goes By", "Losing My Mind"), entendemos de imediato que o lugar
dele é na companhia de Porter, ou
Gershwin, ou Rodgers, e muito acima de Bernstein, para quem escreveu as letras de "West Side Story".
Sondheim tem novo musical em
Nova York e, leitores, se vocês forem
pessoas de sorte, Nova York é o destino. Claro que, para sermos rigorosos, o musical não é novo. Cronologicamente falando, data de 1970.
Mas ao contrário da cultura musical desse tempo, pateticamente obcecada com os dramas políticos da
contracultura (o insuportável
"Hair" é o exemplo máximo), Sondheim ocupou-se do que é permanente na natureza humana. Hoje,
ver ou rever "Company" é uma experiência tão nova e tão comovente
como em 1970.
"Company" é uma peça sobre o
casamento. Ou, como diria Musil, é
uma peça sobre os homens sem qualidades: capazes de habitar o mundo
moderno sem estabelecer nenhuma
ligação substancial com os seus semelhantes. Esse homem é Bobby,
solteiro, a caminho dos 35, com cinco pares de amigos, casadíssimos,
que esperam ver o amigo em situação "regular". Bobby vai passando
por todos eles. E todos eles vão dissertando sobre os prazeres e os desprazeres do casamento com uma
ironia e uma ambigüidade que são
Sondheim "vintage".
O exemplo máximo dessa ironia e
dessa ambiguidade acontece com
"Sorry-Grateful", seguramente uma
das mais belas canções de toda a história da Broadway, e acontece quando Bobby pergunta a um dos casados se ele nunca lamentou ter dado
o passo matrimonial. A resposta,
que o título resume, é a única resposta possível para quem partilha os
dias com alguém: lamentamos e
agradecemos; duvidamos e temos
absoluta certeza; sentimos que não
estamos sós e sabemos que continuamos sós.
"Company" não é apenas um musical sobre adultos. É sobretudo um
musical para adultos, sem que o patético sentimentalismo romântico
se introduza nos versos, pronto para
distorcer a verdade última da nossa
condição: sim, existem vários motivos para não estarmos com alguém;
mas talvez não exista nenhum para
estarmos sozinhos. É essa conclusão, dolorosa e sem entusiasmo, que
Bobby verbaliza no tema final,
"Being Alive", uma meditação pessoal e espiritual de arrasadora beleza. Para quê deixar entrar na nossa
vida alguém disposto a sentar-se na
nossa cadeira, a arruinar o nosso sono, a conhecer-nos profundamente
e, quem sabe, a magoar-nos profundamente? Porque estar só é estar só,
não é estar vivo.
E se você, leitor, ainda tiver dúvidas sobre o casamento depois de ouvir ou assistir a "Company", não desespere: talvez esse seja o estado natural. Com a certeza de que a pessoa
que ama terá as mesmas dúvidas. E
com dúvidas ficará ao seu lado.
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