São Paulo, quinta-feira, 09 de julho de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NINA HORTA

O frango do leitor


A mãe trinchava só com faca e garfo, desarticulando as partes do frango e provando, no gesto, que fora bem assado


JÁ HÁ algum tempo que os leitores não fazem a coluna. Esse não quer ser identificado. Mil desculpas, senhor pena de ouro, mas este frango vai para a Folha. Ensopado, ainda por cima. "Ali fumegando na mesa, as coxas apontando para o céu. Sem adjetivos um frango é nada, insosso. Não dá para comer. Precisa ser caipira ou, no mínimo, carijó. Branco, nem pensar. De preferência criado em casa, com pai e mãe conhecidos. A galinha gorda, cloaca larga. O galo alto e peitudo, de briga. Comendo restos de arroz e feijão bem temperados e quirera de milho. Um dia alguém ouvia o ensaio de canto e zaz! Panela! Ou forno. O tempero devia ser apenas sal, pimenta-do-reino e vinagre. Em algumas casas usavam também a cebola e o alho. Um desperdício.
Na hora de assar, um alecrim enfiado entre a pele e a carne como dinheiro em bolso de malandro. O cheiro do alecrim não podia sair e entrava na carne. Se não havia criação na casa, se comprava o frango de vara, na porta. Aí precisava um tempo no galinheiro para limpar por dentro. Comia só milho. E a pele ia ficando amarela, e o bicho engordava. A desvantagem é que às vezes ia cantando e tomando ares de galo, passava um pouco do ponto de abate até ficar limpo e gordo.
A faca na garganta exigia sangue frio. "Você mata frango?" A resposta "mato não senhora" significava que não teria o emprego. De que adiantava lavar, passar e engomar, encerar bem a casa com o escovão se não tinha sangue frio? Valia nada. "Mato. E sei fazer molho pardo."
Dava gosto ouvir. "Fulana tem um bom tempero", queria dizer de feijão e de frango. E sangue frio. O sangue do frango se conserva com vinagre, para não talhar. O melhor tempero era das filhas de criação. Elas sabiam do gosto da casa. Viviam para agradar e agradecidas. Na mesa, todos em volta do frango.
À mãe cabia dividi-lo porque mãe é quem sabe tudo sobre o gosto de cada um. O pai em primeiro. Se gostava de peito, os filhos comiam as coxas. Se gostava de coxas, os filhos comiam o peito, de forma que as gerações iam se alternando no gosto de coxas e peitos.
No geral, um pai que gostava de coxa era sempre filho de um pai que gostava de peito, pois havia os filhos protegidos, que podiam provar do repasto do pai -e se o avô vinha almoçar, matavam-se dois frangos para que não houvesse disputa entre netos e avô, o que hoje chamam conflito de gerações. A mãe sempre comia a sobreasa, que não é coxa nem peito nem asa e não entrava na disputa. Mãe é mãe, sempre pairando acima dos conflitos. A asa só se comia na gula, na repetição. Ou sobrava para a empregada que, no geral, gostava mesmo é de sobrecu, chamado de curanchim ou uropígio para não introduzir o cu no festim.
Nunca vi comer-se um sobrecu à mesa. Sempre na cozinha. A mãe sabia trinchar só com faca e garfo, desarticulando as partes do frango e provando, no gesto, que fora bem assado. Era o ponto. Acho que deve-se aos franceses a tesoura de trinchar frangos: a cabeça do fêmur grudada na carcaça, a sobreasa levando um pedaço de peito e de asa... Um horror!
Em vez da comunhão, uma cena de mutilação presidida pela mãe. Como uma família assim poderia se amar e se respeitar? E vieram os supermercados, com as partes de frango em bandejas resfriadas. O frango decomposto, mal cheiroso que nem alecrim cura, sem gosto, molenga, gordura doente que não serve para canja. Cada filho come na hora que bem entende. A empregada já não precisa saber nada. É por isso que eu digo: família é, por exemplo, comer harmoniosamente um frango."

ninahorta@uol.com.br


Texto Anterior: Tentações
Próximo Texto: Comida: A nova cozinha brasileira
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.