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CONTARDO CALLIGARIS
Recessão para a molecada
Gostamos de imaginar
que, se faltasse comida, enganaríamos nossa fome mastigando cadarços -pão, bife e sorvete continuariam aparecendo
no prato de nossos filhos. É normal sacrificar-se pelo bem-estar
da prole.
Essa é a maneira moderna de
amar os filhos: eles são uma espécie de time da prorrogação, encarregado de salvar os jogos que
nós não conseguimos ganhar durante o tempo regulamentar de
nossas vidas. Portanto vê-los saborear pratos dos quais nós nos
privamos é uma consolação: penamos, mas, em compensação,
eles, carne de nossa carne, desfrutam cada instante.
Esse estereótipo é confirmado
pelos números do consumo juvenil na última década: nas classes
médias (e não só nelas), crianças
e jovens foram mimados como
nunca.
Agora essa década próspera
acabou. Nos EUA, as empresas
não fazem mais leilões para conquistar funcionários. Ao contrário, fala-se em demissões para
conter os custos. A queda da Bolsa
acabou com uma fonte de dinheiro fácil.
Nem por isso deveria mudar o
estereótipo mencionado acima: só
seria preciso que os pais se sacrificassem um pouco mais. Eles poderiam renunciar ao almoço para
garantir o celular da menina, suprimir as saídas do sábado para
subvencionar a roupa do menino
etc. Ou seja, mesmo em clima de
austeridade, os rebentos deveriam sofrer por último e sempre
menos do que os pais.
Contrariando essa expectativa,
um artigo do "Wall Street Journal" de 13 de julho, "A Kid Recession?" (Uma Recessão para as
Crianças?), apresentou uma pesquisa segundo a qual, no fim de
2000, os adultos aumentaram (levemente) seus gastos, enquanto o
consumo destinado a jovens de 8
a 24 anos de idade diminuiu em
um terço. Em 2001, a tendência
está confirmada: até agora, os
adultos americanos seguem consumindo, mas 12% das crianças
tiveram sua mesada cortada de
maneira significativa e 16% queixam-se de que recebem menos
presentes.
Será um simples efeito da crise?
Não acredito.
De regra, as dificuldades financeiras não têm o poder de acalmar a paixão (narcisista) dos pais
modernos pelos seus filhos. Todos
conhecemos mães que vivem de
bicos, mas esbanjam R$ 250 para
colocar nos pés do filho um tênis
que o moço mal queria, mas que
constitui, para a mãe, uma revanche contra a vida. Assim como pais endividados que contratam palhaços e cantores para a
festa do aniversário dos seis meses
de seu nenê: mesma revanche.
Quanto mais os pais se vêem como insatisfeitos, tanto mais eles
podem querer compensar suas
frustrações pelos filhos. "Não tenho comida? Caviar nos moleques."
Como entender, então, o artigo
do "Wall Street Journal"? Pois
bem, se a recessão leva os pais a
cortar as mesadas e não suas próprias despesas, é provável que a
falta de meios seja apenas um
pretexto. Quem sabe os pais procurassem há tempos uma desculpa para interromper a festa dos filhos?
Como assim? Não foram eles, os
pais, que permitiram e encorajaram a dita festa? Foram, sim. Mas
nós, pais contemporâneos, somos
atormentados por uma contradição. Adoraríamos que nossos descendentes tivessem tudo o que
não tivemos. Ao mesmo tempo,
gostaríamos que eles sofressem
privações e interdições.
Explicamos essa incoerência da
maneira seguinte: amamos nossos filhos e, portanto, somos generosos com eles, mas, para o próprio bem deles, queremos proibir
seus prazeres, treiná-los, sei lá,
para a "dura" realidade.
Essa explicação é um duplo conto de fadas. Nosso amor não é tão
generoso assim: a satisfação dos
filhos serve para abrandar nossas
frustrações. Do mesmo jeito, uma
boa parte de nossa eventual severidade não provém de alguma sabedoria pedagógica, mas de nossa
inveja.
Inveja dos filhos? Pois é, antes
de discordar indignado, considere
esta contradição: frequentemente, quando contemplamos nossos
filhos enquanto usufruem as
mordomias que lhes proporcionamos, experimentamos um misto
de contentamento e de mal-estar.
Como se nos irritasse a naturalidade com a qual eles se valem do
que nós mesmos lhes oferecemos.
Outra contradição: encaramos
qualquer sacrifício para ver nossos filhos felizes e satisfeitos, mas
passamos nosso tempo imaginando interdições para policiar seus
prazeres. Colocamos uma televisão no quarto de uma criança,
mas exigimos que ela a use apenas durante duas horas por dia.
Instalamos um computador só
para ela, mas queremos limitar e
controlar o seu acesso à internet.
Oferecemos telefone fixo e celular,
mas proibimos comunicações frequentes ou longas demais. E por
aí vai.
Gostaríamos, ao mesmo tempo,
de dar tudo e de proibir tudo. Por
quê? Suspeito que o espetáculo da
"felicidade" das crianças -produzido para nosso prazer e consolo- esteja nos enjoando.
Era previsível que isso acontecesse. Mimamos os filhos para
contemplar seus prazeres: eles gozando da vida, nós gozaríamos
por procuração.
Inevitavelmente essa contemplação tornou-se indigesta. Por
que eles e não a gente? Por que
promover seus prazeres vicários e
não pensar diretamente nos nossos? A maneira moderna de amar
os filhos talvez tenha chegado a
um impasse.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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