São Paulo, sexta-feira, 09 de dezembro de 2005

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"FAMÍLIA RODANTE"

"Road movie" otimista capta vida real

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Existem labirintos em linha reta, ensinava Jorge Luis Borges quase distraidamente. Outro argentino, Pablo Trapero, topou o desafio de trilhar um desses caminhos misteriosos em seu "Família Rodante".
Ali, Emilia decide deslocar-se com toda sua vasta família de Buenos Aires a Misiones, onde será madrinha de casamento de sua sobrinha. Trata-se, portanto, de atender a um chamado da irmã.
Quem recordar a história do velho Alvin Straight, de "História Real" (David Lynch), não estará longe da verdade. Alvin atravessava um longo território num carrinho de cortar grama para reencontrar o irmão, com quem estava brigado. Todo mundo estranha esse filme de Lynch: um filme linear, estonteantemente linear -ele que costuma fabricar labirintos para nos aprisionar dentro. Talvez haja uma explicação (para Lynch): a história de Straight é um épico, uma história plena, não um clichê como esses que povoam a indústria de cinema e sobre os quais Lynch fabrica suas fábulas.
O caso de "Família Rodante" não é muito diferente. Aquele trailer atravessando a estrada, modelo 58, parece o caminhãozinho de "As Vinhas da Ira", tão frágil e tenaz ao mesmo tempo. Lá vão 12 pessoas, pelas contas da velha Emilia. Duas filhas, maridos, netos e netas, uma amiga...
Há um pequeno mundo lá dentro, vivendo em torno da obsessão de Emilia, de chegar a tempo a Misiones, não importa que o caminhão quebre, acabe a gasolina, comece a dor de dente ou a polícia rodoviária decida intervir na bagunça. A vida segue, tem de seguir. É disso que nos lembra todo o tempo este filme belo, pela sensibilidade, e otimista pelo final.
Otimista porque no final há uma festa. E as festas de certa forma curam todas as feridas do caminho. E talvez seja o caso de percorrer os caminhos apenas para chegar à festa ao final e curar as feridas da caminhada.
Como no caso de outros bons cineastas argentinos, Trapero filma sem frescura. Em vez de esbanjar recursos e movimentos de câmera inúteis, trabalha seus atores até dar a impressão de que suprimiu qualquer interpretação. Traz para seu filme a inteligência literária argentina, mas sem colocá-la na tela como signo. Ela se manifesta seja na fluência dos diálogos, seja na capacidade de observação de paisagens e pessoas.
Trapero já disse que sua facilidade para fazer este filme veio do fato de que, na infância, sua família tinha um trailer como esse. Que isso ajuda, ajuda. Mas há algo mais em seus filmes, algo que já era visível em "O Outro Lado da Lei", que é um sincero desejo de compreender e acolher seus personagens -as pessoas, em suma-, com suas virtudes, defeitos e limitações. Talvez isso torne uma dor de dente tão interessante: há gente de verdade, ali, algo capaz de transformar uma simples história em história real.


Família Rodante
    
Direção: Pablo Trapero
Produção: Argentina/Brasil/França/Alemanha/Espanha/Reino Unido, 2004
Com: Graciana Chironi, Liliana Capurro
Quando: a partir de hoje nos cines Bombril, Lumière e Frei Caneca Arteplex


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